POR UM GOLPE DE AR

Corria a última década do século XIX naquele canto afastado da cidade do Recife, “de velhos sobrados, compridos, escuros” como cantou Capiba.

Depois da missa na igrejinha do Poço da Panela, aonde fora cumprir a promessa feita a Nossa Senhora da Saúde, por ter conseguido curar-se de uma erisipela dona Ana Belisária Nogueira Alvarenga e Silva conhecida por todos como dona Belinha, bateu palmas junto ao portão de ferro do sobrado da sua irmã, dona Amélia Aparecida Nogueira de Athayde, esposa do Barão de Athayde atual proprietário dos canaviais desde a margem direita do Capibaribe até a cerca divisória com as terras do Engenho do Meio.

Com passos lentos, próprios das pessoas muito idosas, Inocêncio, escravo alforriado que como os demais, fez questão de permanecer no sobrado de dona Cidinha, onde era tratado como parte da família sendo-lhe permitido fazer as refeições na mesma mesa com os antigos senhores, com total desaprovação por parte de dona Belinha, escravagista inconformada com a abolição à qual sempre se referia como o ato tresloucado da Princesa dona Isabel para ruína da monarquia que ela tanto prezava.

- Bom dia dona Belinha. Louvado seje nossô zuscrito.

- Para sempre seja louvado o seu santo nome. Onde está dona Cidinha?

Perguntou com a autoridade que sua posição social diante de um eternamente escravizado lhe inspirava.

- Tá lá drento senhora.

Dona Cidinha apareceu na janela para ver quem estava batendo e ao ver a irmã, veio ao seu encontro.

- Que bom vê-la tão cedo, minha irmã. Vamos comer qualquer coisa antes de irmos para a igreja? Hoje eu não vou comungar. Preciso me confessar antes... (acrescentou com certa malícia na voz)

- Já estive na igreja. Assisti a missa na companhia de dona Olegarina.

É uma boa pessoa, mas com ideias desastrosas a respeito desses negros...

- Mais um pouco e o almoço estará servido.

Felícia está cozinhando o capão que o senhor meu marido arrematou no leilão da festa da padroeira.

- Logo depois do almoço tenho que voltar para casa. Daqui até lá é um bom pedaço e não podemos mais usar as cadeirinhas de arruar e as mulas foram levadas para o engenho por causa do corte de cana.

Estamos a pé, minha irmã e com essa dor de cabeça que não me larga.

- A senhora precisa consultar o doutor, está certo que mulher foi condenada por Deus para sentir dor, mas só no parto.

- Doutores não sabem de nada. Meus chás são bem mais eficientes...

- Não se preocupe com a caminhada até sua casa. Vou mandar Lourenço lhe levar na canoa. Com pouco tempo a senhora já estará em casa com toda comodidade. Talvez eu vá junto para aproveitar o passeio. O rio está manso, porque ainda falta um bom tempo para as chuvas.

- Será uma boa oportunidade para a senhora, minha irmã, ver as rendas de almofada que estou fazendo para as peças novas que vou doar. É esmola para a igreja do Santíssimo.

- Deite-se aqui na rede para descansar enquanto mando limpar a barca para não sujar os nossos vestidos.

- O senhor meu cunhado é muito benevolente com esses escravos...

- Já não são mais escravos minha irmã. Hoje são pessoas livres pela bondade da nossa Princesa Isabel, que Deus lhe conserve em graça.

- Com esse gesto tresloucado, a princesa perdeu o trono e nós perdemos a monarquia e os serviçais.

- Os que eram meus escravos, que sempre foram tratados como todos os cristãos devem ser, permaneceram conosco.

- É. O senhor meu cunhado e a senhora, minha irmã, nunca souberam se impor como superiores que somos...

- Mandô-me chama-me sinhá?

- Sim Inocêncio. Vá dizer a Lourenço que limpe a canoa, porque nós vamos levar a senhora minha irmã até o sobrado da Jaqueira, logo depois do almoço.

O rio Capibaribe que margeia o largo do Poço da Panela é o mesmo que logo depois do Campo de Santana, faz curva para a direita em direção à Ilha do Retiro, para se espalhar entre as ilhas da planície aluvionária, rica em manguezais que ele ajudou a construir.

Os quatro janelões do imponente sobrado olhavam de frente para o rio que mansamente levava as baronesas flutuantes para mar que em maré vazante fez com que a viagem da embarcação durasse pouco tempo.

- Espere aqui Lourenço. Vou no sobrado, mas volto logo.

- A senhora minha irmã, não tem que dar satisfações do que faz ou vai fazer para esses...

- Preciso sim Belinha. Sou uma cristã, graças a Deus, e não me importo com a cor que tenham os nossos semelhantes.

- Alto lá, Cidinha. Seus semelhantes, não meus.

- Para que tanto orgulho, senhora minha irmã, se no fim todos nós estaremos diante do Senhor, iguais, filhos do mesmo Pai que está nos céus e salvos pelo seu filho amado, nosso Senhor Jesus Cristo.

- Lembre-se minha irmã, que até entre os anjos há hierarquia e, se se aplica a eles, quem somos nós para sermos diferentes?

Olhe aqui as rendas. Encomendei na loja da Rua do Livramento, uma peça de tecido branco, adamascado, inglês. Deve chegar no próximo navio e o senhor Salim vai mandar entregar lá em casa.

- Vai ficar uma belezura. Preciso voltar para casa antes que anoiteça.

- Não sem antes comer uma taça da compota de jaca que mandei Inácia preparar. Ficou uma delícia. Essa negrinha tem mãos abençoadas para cozinhar.

- Não só para cozinhar minha irmã, ela é toda abençoada. É minha afilhada e eu rezo todos os dias pela felicidade dela.

- Boa tarde sinhá Belinha, bênça madrinha Cidinha.

Falou com voz sumida a mocinha que acabara de entrar na sala de costura do sobrado senhorial fustigado pelo vento morno da tarde que se despedia do dia.

- Deus te abençoe minha filha e te faça muito feliz. Você está uma moça linda. Qualquer dia desses vai arranjar um noivo para casar...

- Não enquanto estiver na minha casa.

- Melhor eu levar um pote da compota para comer depois da ceia, junto com o Barão, senhor meu marido.

O sobrado da dona Belinha, viúva do Major Teobaldo, destacava-se entre as mangueiras que compunham a paisagem daquele bairro afastado. Imponente e separado dos demais da rua da beira do rio, com as suas janelas de frente para o nascente, calçada alta e enfeitado com as coloridas pinhas de cerâmica portuguesa nos beirais.

Os muitos quartos que foram ocupados pelos filhos quando solteiros, hoje participavam da mesma solidão da senhora dona Belinha que nunca soube cativar as amizades das seis noras ou dos quatro genros, muito menos dos trinta netos, todos, filhos do capiroto, na sua maneira de ver o mundo e a educação que a modernidade estava espalhando.

Desobedientes, malcriados e inúteis.

A noite fora excepcionalmente quente.

O vendo que se manteve ativo no início da tarde havia cessado, só retornando com o alvorecer.

Por causa das muriçocas o cortinado teve que permanecer fechado.

Ao levantar-se dona Belinha abriu a janela do quarto do casal em que dormia, no piso superior do sobrado, e seus olhos foram golpeados pela luz do sol e o vento forte, frio e úmido que corria livre sobre o rio.

Com a dor cruciante que estava sentindo, gritou chamando Inácia que se tornara a sua única companhia nesses últimos tempos.

- O que foi sinhá? O que aconteceu?

- Me ajude a voltar para a cama. Não estou conseguindo enxergar.

Na semana seguinte, o médico que fora chamado para examinar a matriarca da família, anunciou aos filhos, noras, genros irmã e cunhado que a senhora dona Ana Belisária Nogueira Alvarenga e Silva estava irremediavelmente cega e precisando de cuidados permanentes.

Diante da consternadora revelação, o Barão de Athayde sussurrou no ouvido da esposa, o orgulho cega.

Convença-a para ir morar conosco.

CITAÇÃO

Capiba – Lourenço da Fonseca Barbosa, (1904/1997) músico Pernambucano.