Ofuscante como o sol do meio dia
— Socorro! Há alguma alma disposta a me ajudar?
Os curiosos começaram a aglomerar em torno do espetáculo que se formara. Exceto para aquele senhor avançado em dias, que via seus últimos suspiros se encerrar submerso em lama. Como pode terminar sua vida daquela forma degradante?
Ele havia sido um próspero comerciante local. As pessoas mais influentes da cidade eram seus amigos íntimos e companheiros de atividade, porém, as extravagâncias, associadas à sua má administração havia feito ruir seus negócios. A esposa logo se cansou da sua vida boêmia e do esbanjamento que fazia com outras mulheres em noitadas infindáveis. Havia partido, levando seus filhos embora para um destino ignorado, desde então, nunca mais ouvira falar deles. Como ele os amava! Mas não havia demonstrado seu amor como deveria, somente depois que os perdera soube reconhecer, então já era tarde, restava apenas seu lamento e sua autocomiseração.
Vinte anos se passaram, e a partir daí sua vida fora decaindo à galope. Nos últimos dez anos viu seu comércio entrar em decadência até que não lhe restou mais nada, apenas aquele cavalo tão cansado quanto ele e a velha carroça que agora o prensava contra a lama e comprimia seus pulmões fazendo-o acreditar que aquele seria seu último suspiro.
De repente ouviu-se um grito:
— Abram caminho!
Levantando os olhos, o velho conseguiu ver a silhueta do Senhor Madeleine, o prefeito da cidade onde moravam. Como ele odiava aquele homem. Surgiu sabe-se lá de onde. Ninguém sabia de onde viera e nem o que pretendia por ali. Chegou misteriosamente numa noite qualquer e parecia ter o poder de Midas, pois tudo que tocava virava ouro. O comércio daquele homem era promissor e crescia na mesma velocidade que seu próprio negócio afundava. Os negócios do homem misterioso não tinham relação alguma com o seu, nem tampouco, com sua decadência financeira. Sua falência ocorrera devido sua má administração e extravagâncias que fazia cotidianamente, e isso nada tinha a ver com a prosperidade do tal homem, mas tomado pela zelotipia pela cidade onde nascera e pela mediocridade do seu coração, o odiava.
A inveja é um sentimento amarelo, que deixa turva a visão de quem a alimenta, consumindo sua alma, drenando sua alegria, fazendo-o transferir para o outro a insatisfação e ingratidão do seu próprio coração, tornando sua alma amarga como o fel, deixando-o incapaz de reconhecer um benfeitor.
Não importava que todos na cidade amassem o prefeito, tampouco que ele em sua sapiência fizera progredir toda a região, ainda que seu olhar sereno, humilde, deixasse latente que nada daquilo importava a ele, o dinheiro, a posição que assumira após muita insistência das pessoas mais influentes da cidade, nada. Seu único objetivo era ajudar aos necessitados e fazer prosperar a todos.
Como pôde um homem sem família, sem origem, sem raízes, prosperar enquanto ele que era de uma família proeminente não soubera administrar o que já possuía? Seu negócio ruíra enquanto a antiga fábrica que antes estava quase abandonada havia se tornado o comércio provedor para toda a região. “O que esse homem esconde? ” Pensava. Recorria a justificativas vis para encontrar razão para odiar aquele homem que mal conhecia ao invés de olhar para dentro de si e apontar o verdadeiro culpado, no fundo era a ele mesmo que odiava.
Enquanto isso, o Senhor Madeleine continuava sua ascensão meteórica na cidade, ganhando cada vez mais influência e respeito. Sua benevolência e generosidade eram reconhecidas por todos, e sua reputação só crescia a cada dia e se expandia por toda parte. Mas, para aquele homem decadente, decrépito, cada sucesso do próspero comerciante era como uma faca sendo cravada em seu coração envenenado pela inveja, inebriado pelo despeito. Ele não conseguia suportar ver o homem que ele tanto odiava prosperar enquanto ele próprio lutava para sobreviver.
Naquele momento em que perecia sufocado pela velha carroça que lhe esmagava, ouvir a voz daquele homem parecia ser uma ironia maldosa pregada pelo destino. “É o que me resta”, - pensou – “morrer dessa forma decadente na presença desse homem repugnante que apenas salienta minha incompetência como ser humano”.
O senhor Madeleine, com sua autoridade, afastou os curiosos e ignorando qualquer diferença injustificada que o carroceiro pudesse ter com ele, arrastou-se pela lama, entrou embaixo da carroça e utilizando de suas costas como uma alavanca, levantou o trambolho suficientemente para que a população pudesse retirá-la de cima do velho que jazia ferido.
Confuso, o homem que quase fora soterrado, levantou-se envergonhado, não por estar coberto de lama ou pela completa incapacidade acarretada pela idade, de conseguir sua própria subsistência, mas pela condição miserável de sua alma invejosa. Enquanto a multidão se agitava em torno do ocorrido, admirados pela força sobre-humana do prefeito, o velho ainda constrangido pela situação, sentiu-se humilhado não apenas pela lama que cobria seu corpo, mas principalmente pela mancha nebulosa que cobria seu caráter.
Enquanto observava o Senhor Madeleine se afastar após ter salvado sua vida, um turbilhão de pensamentos tumultuava sua mente. Ele se perguntava por que um homem tão próspero e respeitado se daria ao trabalho de mergulhar na lama para ajudar alguém como ele, cuja vida estava em ruínas devido à própria imprudência e que fazia questão de tratá-lo com desprezo motivado pela invídia?
Esses pensamentos persistiam enquanto homem se via cercado por olhares de pena e julgamento de todos ao seu redor. Ele sentia o peso de sua própria mesquinhez e tinha consciência que, mesmo sendo grato pela intervenção do Senhor Madeleine, a inveja o corroía ainda mais por dentro, pois a nobreza demonstrada pela atitude do prefeito contrastava com ele como o sol do meio dia, ofuscando-o por completo, salientando sua alma vil e miserável.