A menina do leite
Já fui leiteiro. Trabalhei numa vacaria tirando leite, tratando bezerros, cortando capim, misturando água no barril, ensacando e entregando no comércio. Desse trabalho lidando com vacas eu gostava. Acordava cedo, ganhava quase nada e trabalhava muito, mas compensava: comia muito queijo, bebia leite para matar a sede, andava para cima e para baixo de cavalo e até o cheiro de estrume quente me agradava muito. Faz tempo. Nessa época devia ter uns dezesseis anos.
Era um sítio grande, com pomar, roça de milho, feijão, mandioca, muitas vacas, três casas, curral grande, galpão e trator. Eu não conseguia entender por que não chamavam aquilo de fazenda. Humildade da dona, devia ser. Era o sítio de D. Tereza, senhorinha já de idade, miudinha, um amor de pessoa.
Todo jeito de avó; adorava cozinhar, sempre na cozinha, mexendo no fogão de lenha. Fazia doce, bolo, queijo, biscoito de polvilho. Parecia saber que eu vivia com fome e me chamava para comer, eu bebia um bule de café quente.
Vivia só naquele casarão velho, com suas memórias, recordações de um passado distante quando haviam tropas, serestas e novenas e a casa estava sempre cheia, o marido era vivo e os filhos criança.
Já devia ter uns setenta anos naquela época ou menos, vai saber, o sol castiga muito o corpo de quem trabalha na roça. Chamava-se D. Tereza, mas no fundo o que aquecia o coração dela era ser chamada de Menina do Leite. Assim ela sempre foi tratada até começar a aparecer as rugas da idade no rosto. Os mais antigos, da idade dela, ainda a chamavam de Menina do Leite. Às vezes, quase que sem querer, ela mesma se referia a si dessa forma. Pensando bem agora, que eu também envelheço, deve ser muito bom ser menino para sempre, ser tratado com carinho e de um jeito que te deixe aquecido por dentro.
Hoje queria saber mais sobre a vida da Menina do Leite, mas naquela época eu fugia de qualquer conversa longa com gente de idade, faltava paciência, agora eu sei. Queria mesmo era correr atrás de bezerros, arrumar desculpa para selar cavalo, pôr arreio de carroça e me mandar para a cidade em busca de alguma coisa, qualquer uma, que mostrasse o que eu achava que era o mundo.
D. Tereza queria contar a sua história e eu não estava atento para ouvir. Agora, estou aqui desesperado para contar a minha. Feito um tonto com um telefone na mão, gravando, falando sozinho enquanto ele apita avisando que também está sem tempo para me ouvir: a bateria acabou.