Para o infeliz até o sorriso do outro incomoda
Lívia estava muito feliz e radiante, seu irmão logo iria se casar.
Ela gostava muito da sua futura cunhada, tomava-a como uma irmã. Desde que a vira pela primeira vez sentira uma afeição inundar seu coração infantil e onde sua cunhada estava, lá estava ela acompanhando.
Lívia era uma menina preta, esperta, com uma inteligência que se destacava entre as outras crianças. Contudo, por ter a pele escura, retinta, sofria muito preconceito e era desprezava no meio em que vivia. Ao ver chegar em sua família sua cunhada, Luzia, que era branca e a tratava com tanta delicadeza, Lívia se viu aparada, pois esperava que agora as pessoas a respeitasse mais.
A menina já estava no final da segunda infância, mas ainda era ingênua demais para compreender as maldades que há no ser humano, e nem queria, o que importava a ela é que tinha a amizade de Luzia, e isto a bastava.
Os anos foram passando e a moça mantinha por sua cunhada a mesma lealdade que em sua infância. Inúmeras vezes tomara partido de sua cunhada nas pendengas entre ela e seu irmão. O homem ficava enciumado, afinal, ele era o sangue e merecia ser protegido incondicionalmente. Lívia não se importava, para ela a amizade era superior ao sangue.
— Amigos são a família que podemos escolher. – Dizia entre risos, ao abraçar sua cunhada e melhor amiga.
O tempo foi passando e agora era Lívia que tinha seu esposo e constituía sua família. Ela estava muito feliz e satisfazia-se em contar de sua felicidade para a cunhada. Mas o que ela não conseguia perceber é que aquela amizade não era sincera como ela imaginava. Sua cunhada não a tinha como amiga, apenas como uma aliada que a apoiava em qualquer circunstância.
O que Lívia não sabia era que a bondade de seu coração não era correspondida pelos olhos de sua cunhada. Luzia, enredada nas teias da inveja e da despeita, desprezava a menina por ser negra, por sua leveza de espírito e por sua vida que mesmo sendo manchada com as cores do preconceito e da intolerância, não era o suficiente para apagar seu brilho e sua alegria.
Certo dia, Lívia viajara e permanecera longe do vilarejo que morava por algumas semanas, ao retornar, sua cunhada havia traçado várias intrigas para que os outros moradores a desprezassem como se fosse alguém irresponsável e descuidada com suas obrigações. Ao chegar de viagem, feliz, trazendo mimos e agrados para sua cunhada, a moça se deparou com um cenário hostil e com olhares condenatórios. Ao buscar informações do que ocorria, soube do que sua melhor amiga fizera em sua ausência.
Aquela revelação foi como um golpe fatal em Lívia que tinha sua cunhada como uma amiga verdadeira. Quanto engano! A mulher não conseguia compreender, ela jamais fizera nada de mal à sua cunhada para que justificasse aquele comportamento. Lívia saiu desolada, precisava caminhar, precisava ficar sozinha. Como alguém por quem tinha tanto apreço e consideração pudera agir de maneira tão vil contra ela sem motivo aparente?
Seguindo por uma estrada envolta em seus pensamentos, a jovem mulher adentrou numa floresta. Tudo que ela queria naquele momento era estar sozinha, refletir sobre o que acabava de descobrir e ficar distante de todos aqueles olhares de julgamento das pessoas que não conheciam sua verdadeira essência.
Ao final daquele caminho, Lívia se deparou com uma velha choupana onde saía fumaça da chaminé. Como tinha sede, por estar andando por um longo tempo, resolveu pedir um copo de água. Chegou em frente à porta, bateu palma e gritou:
— Estou com sede. Um copo d’água por favor!
Em uma pequena janela na lateral do casebre, apareceu uma senhora com traços dos povos nativos, falando em grave tom de voz:
— Pare com essa gritaria! Acabou de acordar o Juvêncio.
— Me desculpe, senhora. Vi que tinha alguém na casa por causa da fumaça e resolvi chamar, estou com muita sede.
— Tudo bem, menina, fique em paz. Já levo água. Só não gosto de gritarias, por isso moro tão distante do vilarejo. Aqui só o barulho dos pássaros, do vento e das árvores me bastam.
Logo a velha saiu trazendo uma cabaça com água que de tão fresca parecia ter sido refrigerada. A mulher tomou um copo daquela água e mais um e mais um.
— Nossa! Você estava realmente com muita sede. – disse a velha descansando a botija na janela da frente do casebre que estava fechada por dentro.
Ela olhou para Lívia e percebeu que seus olhos estavam vermelhos e seu nariz meio inchado, era evidente que chorava por aquela estrada. A senhora pediu que ela aguardasse e logo voltou com duas cadeiras, convidando a moça para sentar-se à sombra de uma árvore frondosa que ficava ao lado da casa cobrindo parte dela com sua sombra.
— Vejo que está cansada, sente-se e descanse um pouco antes de retornar para a vila.
Lívia sentou-se. Estava visivelmente cansada e abatida. Não fora a caminhada que lhe desfigurava o rosto, a dor da decepção a corroía por dentro e moía seus ossos. Ela jamais esperara aquilo de sua cunhada e melhor amiga. Devotara a ela sua amizade desde a meninice e agora era aquela a retribuição que recebia. Estava magoada, ferida, precisava desabafar, colocar para fora tudo aquilo que perturbava seu espírito.
Embaixo daquela árvore, encontrou naquela senhora amável e desconhecida a atenção de que precisava. E assim, desabafou relatando toda a sua história, desde o preconceito que enfrentava, a esperança de uma amizade sincera, até o golpe da decepção. A velha ouvia a tudo com olhar empático e reflexivo. Deixou que a moça falasse tudo que a esmagava por dentro. Ao terminar parecia que havia tirado um grande peso de seus ombros.
— Minha filha. – disse a velha olhando nos olhos dela. – A dor que te aflige é uma das mais insuportáveis, pois fere a alma, destrói relacionamentos levando consigo parte de nós mesmos. A dor da traição é uma ferida que penetra profundamente destruindo nossa essência. É como se o solo sólido em que construímos nossas relações se desfizesse, deixando-nos à deriva em meio a desconfiança. As pessoas que amamos e confiamos se tornam estranhos aos nossos olhos, e somos deixados a questionar a natureza de nossas conexões.
— Mas eu não entendo por que ela fez isso? – Interrompeu Lívia. Eu nunca fiz nada que a prejudicasse, muito pelo contrário.
— Ela tem inveja de você, querida.
— Inveja de mim? Inveja do que? Eu e meu marido somos tão pobres que precisamos da caridade dos outros para sobreviver, se eu ainda vivo a sorrir é porque busco a felicidade nas pequenas coisas.
— Está vendo aí. – respondeu a senhora enquanto abaixava-se para pegar o gato que ronronava em suas pernas. – Venha Juvêncio, vamos conversar um pouco com essa moça, tão linda e tão angustiada. – falou enquanto acariciava o bichano em seu colo. E voltando-se para Lívia continuou. — É exatamente disso que ela tem inveja, da sua felicidade, mesmo não havendo motivo aparente, você é alegre, é vibrante, sorrir. É isso que a incomoda. É isso que ela odeia em você. Seu brilho natural depõe o quão infame ela é. Não precisa de um grande motivo para despertar inveja em uma pessoa medíocre. A inveja é como uma sombra escura que se projeta sobre a alma, obscurecendo a luz da gratidão e da felicidade própria. É como um veneno que corrói silenciosamente, transformando a beleza alheia em espinhos de ressentimento e insatisfação com sua própria realidade. É uma tempestade que, ao invés de alimentar o solo fértil da autoconfiança, inunda os campos da mente com a lama da comparação, despertando o sentimento de inferioridade.
— Então eu terei que parar de sorrir? Não poderei expressar minha felicidade para que não incomode àqueles que são infelizes? – perguntou Lívia angustiada.
— Acalme-se. – disse a senhora enquanto deixava o gato por um instante e tocava suas mãos. — É fácil se perder nessas águas turbulentas, questionando se algum vínculo pode ser verdadeiramente duradouro ou se está destinada a navegar solitária pela vida, temendo qualquer pessoa que se passa por amigo. No entanto, é importante lembrar que a dor da decepção é um reflexo da profundidade dos laços emocionais que você estabelece, da importância que atribui às pessoas à sua volta.
— Como vou conseguir confiar em alguém novamente? E essa mulher que está entrelaçada à minha família, ao meu irmão para sempre. Eu os amo tanto, mas terei que me afastar. É impossível ignorar todo o mal que ela me fez. E agora que voltei de viagem, nem consegui partilhar com ela e os demais que iremos nos mudar para a cidade, eu e meu esposo iremos trabalhar em uma grande empresa e teremos uma vida digna, sem miséria, sem sofrimento. Se ela já me inveja sem nenhum motivo aparente, imagina como irá reagir quando souber que teremos uma vida abastada?
— Menina. – disse a velha olhando-a com ternura. — Viva sua vida sem se preocupar com a opinião ou aceitação alheia. O invejoso é como um alpinista que, ao escalar a montanha do sucesso alheio, não percebe que está cortando as próprias cordas, condenando-se à queda livre da autodestruição. Seu olhar enviesado não só envenena sua própria existência, mas também semeia sementes de desconfiança e desarmonia no jardim das relações. Cada suspiro de inveja é um tijolo que ele adiciona ao muro que o separa da empatia e da conexão genuína com o outro, aprisionando-se em uma fortaleza de ressentimento e vazio. Aproveite desse muro e se mantenha na distância necessária para se proteger de todo mal que intentem contra você e os que amam. Isso não significa que deva fechar seu coração ao mundo, mas sim, que deve cultivar sabedoria para discernir onde depositar sua confiança e como lidar com as inevitáveis desilusões que ainda encontrará pelo caminho.
Lívia abraçou a pequena senhora com todo o amor que possuía em seu coração. A mulher beijou sua testa com ternura e concluiu:
— Lembre-se, minha filha, que a verdadeira força não reside na ausência de dor, mas sim, na capacidade de enfrentá-la, transcender seus efeitos e ressignificar de forma a trazer o bem para você e para outros. Toda situação por mais dolorosa que seja traz aprendizado. Encontre conforto em sua capacidade de crescer através das experiências mais difíceis, e, acima de tudo, lembre-se de que mesmo nas sombras da decepção, há sempre a possibilidade de encontrar luz e renovação.
Lívia se despediu e voltou pela estrada sentindo-se leve e em paz. Aquele encontro com uma senhora tão sábia não fora em vão. Compreendia agora que precisava ter sabedoria para enfrentar o mundo, afinal suas vitórias estavam apenas começando e ela não permitiria que nenhum sentimento negativo, inveja ou despeita a impedisse de buscar seus sonhos.
Diante dela estava a estrada da vida repleta de altos e baixos, de momentos de alegria e tristeza, de encontros e despedidas. No entanto, estava determinada a seguir em frente com coragem e esperança.
E assim, com o coração cheio de gratidão, na manhã seguinte Lívia partia para a cidade em busca dos seus sonhos e de uma nova vida. Deixava para traz sua cunhada para ser consumida por sua inveja e todas aquelas pessoas que a julgavam conforme a mediocridade de seu próprio coração.
Obs. O conto faz parte da coletânea Inveja, da coleção 7 Pecados Capitais da Cartola Editora.