Nunca é o suficiente

Lívia amava sua mãe, vê-la chorar sempre lhe fazia sangrar o coração, mas nada que fazia era o suficiente.

Ela era a filha mais nova em uma família bem pobre e numerosa. Desde cedo aprendera a se contentar com o pouco. Poucos bens, pouco alimento, pouco afeto. A família era numerosa, mas para alegria de seus pais todos nasceram homens, exceto Lívia. Que lástima, uma mulher para enfraquecer o forte elo da família.

Em alguns lares, nascer mulher é o pior castigo que os pais podem receber, pelo menos era isso que Lívia ouvia constantemente de sua mãe. Mas ainda assim, a amava. Ela era criança demais para enxergar o menosprezo, ou talvez, estivesse de tal forma inserida naquela cultura que também se considerasse uma desgraçada. O fato de conviver com quatro irmãos homens e ocupar o mesmo espaço que eles, era privilégio suficiente para aceitar seu lugar no mundo, por isso deveria dedicar sua vida a servi-los e devotá-los.

Sua mãe, Estrela Dárya, era uma mulher expansiva, soberba e exagerada. Mulher que ria alto, fazia amizades facilmente, demonstrava uma gentileza lisonjeira com todos os que a cercavam, mas por trás disso havia uma pessoa vazia e egoísta. Encontrava-se presa em um ciclo de sofrimento que experenciou em algum momento no início de sua vida e jamais se libertara. O mundo girava em torno dela e para ela. Sua filha, Lívia, era apenas um objeto a seu serviço que ela humilhava constantemente, talvez para enaltecer o seu ego e sua sede de poder que suas escolhas não permitiram ter.

Estrela controlava cada passo da filha, com críticas e comparações com as outras garotas, reduzindo-a a nada. Lívia se esforçava para agradá-la, mas nunca era o suficiente. Ainda assim, sentia seu coração sangrar ao ver o pranto de sua mãe e não poder fazer nada que pudesse ajudar.

Estrela Dárya nunca havia desejado ser mãe. Ela achava que a maternidade limitava sua vida e seus sonhos, ainda mais quando engravidou de Lívia próximo aos trinta anos, por isso amaldiçoava aquela gestação. Repetia diversas vezes com grandeza que sentia repugnância de seu corpo e sequer se olhava no espelho enquanto estava grávida. Sua vida e atitudes refletiam bem isso, pois nunca demonstrou carinho ou afeto por sua filha, constantemente a tratava com indiferença e crueldade.

Estrela também odiava seu casamento e atribuía todos os problemas de sua vida ao seu relacionamento. Ela se sentia presa e infeliz, por isso descarregava sua raiva e frustração em Lívia que ainda crescia e que permanecia dentro de casa, tornando-se seu depósito particular de dejetos. Ela a criticava continuamente e a culpava pelos problemas de sua vida.

Lívia cresceu ouvindo essas palavras duras e sentindo-se responsável pelos problemas de sua mãe. Sentia doer seu coração ao vê-la chorar, enquanto lamentava sua vida desgraçada. Por isso ela se esforçava ainda mais para agradá-la, mas nunca era o suficiente.

– Tive que sacrificar minha vida pelos filhos. – falava a mãe em lágrimas. – Deixei de viver para ser condenada a um maldito casamento, pois, não queria ver meus filhos espalhados feito crias de bicho.

Lívia sentia-se triste por ver o quanto sua existência condenou sua amada mãe a infelicidade, assim, evitava a todo custo contrariá-la. De toda forma, as humilhações continuavam, uma vez que para Estrela a maternidade foi um fardo pesado, ter uma filha foi para ela o mais terrível castigo. Sua soberba e insatisfação com tudo que possuía a cegava a tal ponto de não reconhecer nada positivo que ocorria em sua vida. Contrariada pelo que tinha e revoltada pelo que não tinha, descarregava na filha suas mágoas.

– Você não vale nada - dizia Estrela – Você não tem nada de mim, nem parece que saiu de mim. – bradava, como se sua vida fosse uma norma de conduta a ser seguida.

A filha tentava conter as próprias lágrimas e seguir em frente, mas as palavras de sua mãe a consumiam por dentro. Ela se sentia inferior e sem valor, e começou a se odiar. Odiava seu corpo que não era como o das demais garotas. Odiava a cor da sua pele escura, enquanto ouvia sua mãe elogiar as outras garotas bonitas de pele clara e cabelo escorrido. Assim, Lívia foi crescendo, sentindo-se um fardo para o mundo. Um peso morto por ser mulher, por ser preta, por não se parecer com sua mãe.

- Você é idêntica ao seu pai. Ele é a pessoa mais feia que já vi. Um infeliz que destruiu minha vida ao atravessar meu caminho e roubar minha chance de viver.

Essas palavras foram um mantra repetido quase que diariamente durante a infância e adolescência de Lívia. Mesmo assim, ela amava sua mãe e vê-la chorar lhe fazia doer o coração.

Estrela também se mostrava desrespeitosa com qualquer pessoa que se mostrasse diferente dela, não aceitava nenhum comportamento destoante do seu padrão. Àqueles que por alguma razão dependia dela em algum aspecto, seja financeiro ou emocionalmente, recebiam seu desprezo, suas humilhações e críticas, pois ninguém era bom o bastante. Ela se achava superior a todos e vivia como se as outras pessoas servissem apenas para satisfazer seus desejos e necessidades.

Em contrapartida, Estrela Dárya encontrou nos relatos do drama de sua vida um motivo para que lhe dessem atenção. Sentia verdadeira satisfação ao contar como sofrera, como era uma pobre miserável e o quanto a vida havia sido cruel consigo, ainda que a pobreza já não lhe visitasse a tempos. Ela era uma mulher de espírito negativo e sobrecarregado.

Aquele riso fácil era apenas uma máscara para disfarçar, quando era conveniente, a escuridade de sua alma.

Ademais, o peso da sua existência reverberou sobre ela em forma de dores físicas, que eram o reflexo das dores não curadas de sua alma. Ela proferia maledicências e palavras pejorativas para qualquer pessoa que por alguma razão a desagradasse e não tinha nenhuma empatia com os sentimentos e as necessidades dos outros, pois apenas seu próprio drama lhe importava. Dessa maneira, seguiu por sua vida carregando seu pesado fardo, que de tempos em tempos descarregava sobre Lívia, que por amor e piedade ainda tentava manter-se por perto.

Dárya por outro lado, seguia vitimizando-se, com ódio do mundo e da vida por não lhe conceder o que ela afirmava merecer. Exconjurava ter sido vítima do casamento infeliz, vítima da maternidade, sendo que jamais desejara ter filhos, vítima de Lívia, por ter nascido mulher e ser uma péssima filha, por não refletir sua imagem, por não reproduzir seu comportamento.

– Você é ingrata, nunca agradece o que faço, um dia sua boa vida acaba. – Estas foram as palavras que a filha mais ouviu em sua mocidade.

“Vida boa”. Lívia mal conseguia enxergar que possuía uma vida. Mas enquanto tudo isso ocorria, ela foi crescendo, lendo, evoluindo, se conhecendo. E entendeu que o problema não era com ela.

A moça cresceu, evoluiu e descobriu seu lugar no mundo. Por algum tempo ela sentia-se presa, sem esperança, até que finalmente conseguiu se libertar das garras de sua mãe e conhecer verdadeiramente quem ela era. Depois de anos sofrendo com aquelas humilhações, finalmente encontrou a coragem de se libertar daquela situação e encontrar sua verdadeira identidade. Mantendo-se distante daquela figura tóxica, Lívia aprendeu a se amar e a valorizar a si mesma, e encontrou a paz e a serenidade longe do ciclo de violência imposto por sua mãe.

Depois de alguns anos, Lívia tornou-se mãe e buscou agir diferente daquilo que havia recebido. Ela encontrou na maternidade o refrigério que sua alma buscava. Superou as adversidades e encontrou a liberdade em seu autoconhecimento, tornando-se uma mulher forte e corajosa, que escolheu ser um exemplo de amor e cuidado para sua própria família.

Enquanto isso, sua mãe continuava a amaldiçoar a vida. Nada que adquiria era suficiente para satisfazer seu coração e lhe trazer contentamento. Ver Lívia feliz a incomodava e ela estava decidida a fazer tudo que estivesse ao seu alcance para destruir aquela aparente felicidade. Era inaceitável para ela viver em um mundo em que alguém tão indigno fosse feliz sendo que ela não tinha nada do que havia desejado.

Estrela Dárya passou sua vida fugindo da felicidade, a felicidade estava para ela em um lugar inacessível e ainda quando a encontrava não era boa o suficiente.

Obs. O conto faz parte da coletânea Soberba da coleção 7 Pecados Capitais da Cartola Editora.

Iza Diadorim
Enviado por Iza Diadorim em 23/05/2024
Código do texto: T8070002
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.