Neurotípico
Neurotípico
Existem dias que aparece seu eu verdadeiro, quando ele vem a tona é quando você está só, então a sua maquiagem, seu eu para o outro se esconde, por isso tiro um tempo para caminhada no calçadão ao cair da tarde, para encontrar comigo.
O sol estava lá, em sua majestade, o céu azul, poucas pessoas andando, suspirei, talvez com uma certa vontade de gritar, sentei em um banco, precisava não pensar.
-Quarenta e três – ouvi uma voz ao fundo, virei e ele estava lá, metade da camisa do Vasco e a outra metade do Botafogo, talvez tivesse onze ou doze anos, segurava as mão juntas ao peito e tinha um colar que o revelava.
-Olá – disse.
-Oi – disse ele.
Ele sentou ao meu lado, parecia estar sozinho, ficou calado movimentando os polegares junto ao peito.
-Cadê sua mãe – me referia sempre a mãe como a pessoa que tem de cuidar de todo mundo – você está sozinho torcedor?
-Minha tia vende milho ali – ele apontou para uma barraquinha com uma senhora simpática que acenou pra mim, eu acenei de volta.
-Quarenta e três, por que disse esse número? - perguntei.
-Número do seu sapato, eu acerto todos os números de sapato só de olhar, minha tia disse que essa é uma habilidade imprestável – ele disse.
-Acertou o meu– sorriu ao olhar no solado do meu sapato, pra falar a verdade nem eu mesmo sabia – eu gostaria de ter uma habilidade assim.
-Você torce pra que time? – ele me perguntou.
-Não sei, talvez flamengo.
Ele riu e disse:
-Isso aí, todos são bons, eu sou torcedor de todos assim não perco nunca.
-Isso é sábio - disse sorrindo e perguntei - Você joga futebol?
-Minha tia disse que isso é para neurotípico - ele falou embolando as palavras.
-Esse é um palavrão forte, ninguém liga para rótulos – eu virei para apontar a partida de futebol de praia bem na nossa frente - o futebol é só um jogo, que todos podem jogar, e sua tia te explicou o que é um neurotípico?
-Explicou, só que não entendi.
Eu dei uma gargalhada.
-Eu também não entendo, olha que já me explicaram várias vezes, eu joguei futebol, era “perna de pau”.
Ele riu, mostrou a camisa.
-Parece que seu coração esta dividido entre esses dois aí.
-Gosto de todos, gostaria de ter uma camisa com todos os times, mas só deu pra fazer essa.
A gente estava dando gargalhadas quando a tia o chamou, ele disse baixo um “tenho que ir “ sentido, depois me abraçou e disse que se pudesse me encontrava todos os dias.
Que energia teve aquele abraço, reduziu meus momentos ruins a nada.
Voltei mais uma vez na barraquinha de milho, com uma camisa com retalhos de todos os times do rio, mas não o encontrei, a tia me disse que ele foi morar na casa da avó na Bahia, ela não tinha condições de cuidar dele, a irmã era usuária e o pai foi morto pela polícia.
A verdade é que senti falta daquele meu outro eu, criança, que eu me lembre não fui nem um pouco típico.