Delfina e Júlia
Enquanto o ferro estirava a roupa, Delfina pensava em Raimundo. O que quer com ela? E como olha! Mas seu pensamento a transforma na atriz principal da novela das oito, Júlia, dançando na discoteque na sua volta triunfal. Não mais delfina passando ferro nem júlia dançando, era júlia passando ferro e delfina dançando. Não estava na cozinha da casa de D. Mariana, estava na pista de dança. Trocou a sua vida e cantava, desligou o ferro e foi para a sala dançar. Parou bruscamente, e Raimundo? Onde estava Raimundo? Na oficina sujo de graxa lubrificando alguma peça de um carro, nem mecânico era ainda, aprendiz. Graxeiro. Seu corpo macio a acalmava sempre que o furor de não ser nada destruía sua alma, era a invasão de Raimundo que a trazia à vida e por poucas vezes gostava de ser Delfina. O dia que a pinga o fez chorar no seu ombro e só chorou e não quis ser o macho dos outros dias, odiou Raimundo; então é essa porqueira que foi encontrar!? Mas a quentura dele ficou no seio, depois do abraço do consolo. Voltou para o ferro, havia muitas roupas para passar, D. Mariana chegaria e cobraria dela o serviço. À noite voltará a ver Júlia brilhar nas pistas de dança, não vai perder essa novela por nada, Júlia era ela, Júlia, a estrela, dança, ri. Lembrou do seu pai, é minha filha, Delfina, Deus te abençoe minha filha. Morreu. Por que não tem nada para lembrar do pai? Só lembra dele e pronto, era seu pai. À noite sonhara com ele, não lembrava mais do sonho. Uma camisa, passava uma camisa, branca, por pouco teve vontade de queimá-la. Nunca faria isso, mas e se queimasse? Era uma camisa branca bonita. Não valia o quanto vale uma camisa, por uma camisa seria despedaçada, alijada da vida. Passou, passou bem passadinha, mirou, olhou, está bonita, é bonita. De noite vai ver Júlia dançando, sozinha no seu quartinho, na sua televisão. E se Raimundo vestisse aquela camisa, se ele ficasse bonito para ela de noite? Quem é o namorado de Júlia? Para quem Júlia dançava? Hoje ela vai dançar de noite. A vontade de ver Raimundo vestido com a camisa invadiu seu corpo, se Raimundo a tivesse nos braços vestido na camisa? Ela seria Júlia, Raimundo seria o namorado de Júlia e estariam os dois na televisão e todos torceriam por eles. Dobrou a camisa, era a camisa do namorado de Júlia, mas estava na casa de D. Mariana. A tábua de passar fechada, a rua com risos infantis e Raimundo na oficina. Hora de fazer a sopa, a casa estava limpa, abriu o fogão, chorou, chorou, não sabe por quê. Sua mãe lhe ensinara a fazer uma sopa, iria fazer a sopa que sua mãe lhe ensinara. E se suas lágrimas se misturassem com a sopa? A roupa brilhante de Júlia fustigou seus olhos, mexer a sopa era mexer com a vida, era viver. Vão elogiar a comida, vão degustá-la, estarão sorridentes. Raimundo não vai tomar dessa sopa. Será que vai jantar bem? Vai sobrar comida na casa de sua tia? Vai levar um pedaço de bolo para ele, escondido, mas vai levar. De noite vai dançar como Júlia e vai beijar Raimundo como Júlia vai beijar seu namorado.
Rodison Roberto Santos,
São Paulo, nos idos de 2003