Macambúzio e o Calendário Perpétuo

Macambúzio e o Calendário Perpétuo

As chuvas, trazidas por ventanias, haviam chegado um pouco mais cedo, deixando ruas alagadas, casas destelhadas e pessoas ilhadas em diversas localidades. Os temporais daquele ano de 1966, bem acima da média, motivaram mudanças nas rotinas de seus habitantes. Exceto no dia a dia de um recente morador, conhecido por todos pelo apelido de “Macambúzio”.

Peter, esse era o nome do novo habitante da cidade. Um descendente de alemães que passou a morar no centro histórico da cidade. Alugou, por um preço bem abaixo do mercado, um antigo castelo abandonado há mais de um século e detentor de lendas e histórias de fantasmas das pessoas que ali residiram no passado.

Ele se destacava dos demais habitantes daquela pequena comunidade por ser uma pessoa bastante introvertida, solitária e ter uma aparência não comum aos homens de sua idade. Magro, mas não esquelético, tinha a barba e os cabelo grisalhos. O seu aspecto não era de oitenta e quatro, talvez sessenta ou sessenta e cinco anos no máximo. O seu semblante era de uma pessoa melancólica, sempre demonstrava estar triste e nunca sorria. Nos braços podiam-se ver tatuagens bem desenhadas. Ele, às vezes, lembrava o protagonista do clássico de Victor Hugo, “Os Trabalhadores do Mar”.

Desde que havia se aposentado, depois de permanecer embarcado por quase setenta anos em diversos navios mercantes, trabalhando como marinheiro de convés, viajando pelos mares, conhecendo o mundo, nada mais o incomodava do que ter vivido na solidão. Ele adoraria ter tido um outra tipo de vida.

Peter, diferente da maioria das pessoas, em que os arrependimentos normalmente vêm dos planejamentos não realizados, lamentava-se profundamente das suas ações executadas, principalmente das efetuadas no passado longínquo.

Macambúzio, vez por outra, murmurava para si mesmo: “talvez eu seja o homem mais triste da história do mundo. Ainda estou vivo, mas sinto falta de ter vivido e de viver. Preciso melhorar o meu passado para deixar de ser triste.”

Ele sabia que historicamente a interpretação de alguns fatos do passado poderia ser alterada, mas o acontecimento pretérito em si era impossível alguém mudar. Entretanto, a mente de Peter estava bloqueada no que ele tinha que ter feito e não fez.

Durante toda a sua vida profissional Macambúzio conheceu centenas de cidades nos diversos continentes do mundo. E sabia de cor os nomes de todos os lugares que havia visitado, mas em seus pensamentos não havia o nome de um único colega que tenha trabalhado ou dividido um camarote. Não tinha um amigo sequer. Na sua mente só existia nomes de cidades e de uma única pessoa: Lisa, sua mãe.

O motivo nunca se soube, mas Peter desde recém-nascido não gostava de conviver próximos de outras pessoas. Ao contrário de todos os bebês, ele só parava de chorar quando ficava só no berço e sem ninguém no quarto.

Quando adolescente, abandonou o colégio, se desligou dos familiares e foi viver sozinho numa cidade próxima à um grande porto comercial.

Certa vez ouviu alguém dizer que só havia “três tipos de homens: os vivos, os mortos e os homens do mar”.

Então, ainda jovem, não tinha completado quinze anos, ele optou por se tornar o menino do convés, pois assim poderia conhecer muitas cidades e pouquíssimas pessoas.

A escolha de Peter por aquela pequena cidade no litoral, onde passou a ser referenciado por alguns como o homem triste, foi motivada porque ali, segundo alguns marujos, havia vivido um guerreiro que viajava sem navio. Viajava no tempo.

Todos os dias, Macambúzio acordava pontualmente às cinco e dez da manhã e, depois de um rápido desjejum, seguia, comendo uma maçã, em direção ao cais do porto. Lá, sentava-se sempre no mesmo cabeço de amarração. Um pouco avante do guindaste três do terminal de contêineres. E ali permanecia até o meio da tarde contemplando o mar e a movimentação dos navios.

Por mais que tentasse não conseguia dar continuidade as conversas que alguns trabalhadores do porto ou tripulantes tentavam manter com ele. De forma educada e bastante sucinta, respondia às perguntas que lhe eram feitas e nada mais falava porque não sabia o que falar.

Naquele décimo terceiro dia de aguaceiro, em que a cidade já havia se tornado uma área alagadiça e deserta, Peter despertou no seu horário habitual e, num ato costumaz, sentou-se à beira da cama. Olhou para o seiko automático, que raramente saía do seu pulso, e disse baixinho para si mesmo: “chegamos na terceira segunda-feira de setembro”. A solidão, com a qual convivia desde quando tinha decidido sair de casa e viver no mar, acarretara-lhe algumas superstições e manias. Acompanhar o calendário contando o número de segundas-feiras dos meses era uma delas. No instante em que se levantou e começou a caminhar em direção à porta do guarda-roupa, lembrou-se do objeto que havia encontrado, na noite anterior, embaixo de um antigo baú de madeira, o qual, devido as diversas goteiras de chuva no sótão, ele havia empurrado para o canto junto à escada.

Ao terminar de se vestir, Peter foi ao cômodo mais alto da casa e lá pegou em cima da escrivaninha o objeto que havia achado antes de dormir. Era um disco metálico que brilhava intensamente e que, quando visto de uma certa distância, lembrava uma medalha de ouro que os atletas recebem nas olimpíadas. Mas, ao olhar de perto, ele notou que havia alguns números e desenhos gravados no disco que girava por meio de um minúsculo eixo.

Então, naquela manhã chuvosa, vestindo um anoraque azul marinho por cima do seu habitual traje de calça jeans, camiseta de manga longa branca e botas de couro marrom, ele, sem dar a mínima para as condições meteorológicas, manteve a sua rotina diária e seguiu para o cais do porto, carregando na mão direita o disco metálico.

Por diversas vezes Peter, sem se importar com o mau tempo, parou de caminhar e tentou encontrar uma explicação para o movimento circular do disco, porém nada conseguiu entender.

Mas, no instante em que chegou no porto e se sentou no cabeço, ainda manuseando o disco, veio-lhe à mente que aquele instrumento encontrado poderia ser um calendário. E murmurou para si mesmo:

“É isso! Deve ser o calendário perpétuo”.

Ele já conhecia as lendas sobre o castelo onde estava morando atualmente e uma delas versava sobre o Guerreiro Hebert, um dos ancestrais de seus locadores, que segundo a crença local, tinha vivido naquele castelo, na época do Sacro Império Romano-Germânico, e se tornado um vitorioso viajando no tempo com o seu calendário perpétuo.

A partir daquele momento, o velho marinheiro passou a entender a lógica do movimento do disco e o significado dos números neles gravados. Tudo então, para ele, passou a fazer sentido.

E pela primeira vez, desde que havia começado a passar seus dias sentado à beira do cais, Peter não levantou a cabeça uma única vez para admirar o mar e ver os navios que chegavam e saíam do porto. Sua atenção e seus olhos estavam fixados naquele instrumento brilhante.

Ele estava convicto de que tinha encontrado o calendário perpétuo que Herbert usava, segundo as lendas do castelo, para viajar por épocas diferente.

Macambúzio, devido ao seu modo de viver, acreditava, pois já por diversas vezes havia demonstrado a si mesmo, que não há como usufruir momentos de felicidades sem compartilhamento. Não existe felicidade plena na solidão.

Então, agora, acreditando que poderia melhorar o seu passado, Peter girou o dispositivo e o parou quando leu no disco ”6 de abril de 1896”, uma das datas que ele mantinha viva na memória.

Olhando fixamente para o instrumento que segurava com as duas mãos, sem piscar e sem se incomodar com a chuva que o encharcava, ele ficou totalmente imóvel, respirando lentamente como se estivesse hipnotizado, aguardando algo acontecer. E aconteceu.

Do nada, Macambúzio passou a ouvir e ver:

“Meu filho, por que você vai nos abandonar?” Lisa, tentando abraçá-lo implorava para ele não ir embora.

Mas Peter, olhando com tristeza para trás e, sem nada responder, seguiu em direção à rua.

Quando estava saindo pelo portão de casa, resolveu voltar. E voltou para continuar vivendo com a sua mãe e seus familiares, ...

*****

E no mesmo momento, lá no cais, algo também acontecia.

Dois trabalhadores do porto, Tony e Juanito, que passavam próximo ao guindaste três do terminal de contêineres, estranhando o comportamento daquele homem sentado no cabeço, totalmente encharcado, com a cabeça baixa e o rosto apoiado nas duas mãos em forma de concha, se aproximaram.

Tony, segurando braço esquerdo de Peter e levantando a sua cabeça, disse:

“Senhor, Tudo bem? Levanta, vamos sair da chuva”.

Naquele instante, os dois trabalhadores murmuraram ao mesmo tempo: “É o homem triste”.

“Juanito, me ajude a levantá-lo”

E segurando o braço direito e tocando no rosto de Peter, Juanito falou pausadamente para o seu colega:

“A vida é temporária para todos nós, Macambúzio se foi.... Talvez até para uma vida melhor”.

E Tony, fazendo o sinal da cruz, disse baixinho:

"Veja, ele estava segurando um disco metálico”.

Quando aproximou o rosto do objeto que Peter segurava, Juanito concluiu:

“É uma medalha dos Jogos Olímpicos de Atenas e tem gravado a data de 6 de abril de 1896”.

Sérgio Coutinho

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 30/04/2024
Reeditado em 01/05/2024
Código do texto: T8053277
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