No limbo
Quando dois indivíduos estão de acordo em tudo, certamente há um que pensa por ambos.
Não era o caso de Mila Cox e Zími, parceiros musicais na banda Crop Circles.
Zími costumava dizer que a única pessoa que o faria estar no Rock até agora era Mila Cox.
Sua saúde agora sofria um pouco mais com o rolê, então procurava reduzir os danos.
Eles haviam tocado em Catanduva no dia anterior.
Toda vez que voltavam de uma gig, Cox, de vinte e um anos, sentia necessidade de fazer alguma música nova. Geralmente inspirada por algum acontecimento ocorrido durante o último rolê.
Então, quando já estavam de volta a São Paulo, Zími, quarenta e seis anos, estava em frangalhos pelo desgaste da viagem, feita de Kombi.
Para ele era necessário que o dia seguinte a esses shows fora da cidade fosse destinado à recuperação e reflexão.
Como Zími não tinha filhos, vivia focado na autogestão. É um projeto antigo em sua vida, que na fase embrionária o fazia pensar nas despesas e no desgaste que seus pais viveram para que ele existisse.
Não havia motivo para pensar em montar uma família convencional, porque ele já havia nascido numa delas.
Zími prezava por tempo, energia e dinheiro.
O dinheiro sempre foi o mais escasso entre esses recursos, e não podia ser mal investido.
Frequentava bocas de rango para economizar e se locomovia de bicicleta. Nunca teve carro e nem pensava em ter um.
Viver sem o mínimo de aventura àquela altura seria uma aposentadoria precoce da vida. Não estava mais na fase de usar cocaína para acordar e bebida alcoólica pra dormir.
Agora esperava para beber depois dos shows, e apenas à noite nos dias comuns.
Era para si o pai e o filho. Conseguia entreter a si mesmo com seu próprio cotidiano.
Queria ter paz, mas sabia que não a encontraria evitando a vida.
Ele sugeriu que sempre que a distância do local de algum show fora de São Paulo fosse maior que duzentos quilômetros, incluíam na logística o gasto com um hotel simples, ou algum tipo de hospedagem, de preferência na casa de alguma pessoa local com a qual se identificassem.
Mas como dessa vez não descolaram um hotel barato, e até o dia do show não conheciam pessoalmente a promotora da festa, dormiram na Kombi do amigo e vizinho uruguaio Silvano, que também tocou no mesmo evento.
Silvano, quarenta e nove anos, é uma banda de um homem só, e toca uma mistura de Punk Rock, Rock a billy e Blues.
Com o tempo, depois de lançar algumas músicas elogiadas na internet e ter conseguido prensar uma coletânea em vinil, ganhou confiança e o desejo de deixar seu som um pouco mais sofisticado, por conta da influência de Alex Chilton e Van Morrison, seus grandes ídolos.
No dia daquele show, ele estava parecendo o Ray Davies no começo do clipe de 'Do it again'.
Ele morava no apartamento ao lado daquele que Mila Cox dividia com Zími, no bairro da Liberdade.
Nesse show que fizeram no interior, que era numa festa particular de aniversário, receberam cachê.
Eles precisavam do dinheiro para os gastos que tinham com a manutenção de instrumentos e equipamentos.
Uma garota que vivia num condomínio de classe média alta em Catanduva chamou artistas do rock alternativo paulista para tocarem em seu aniversário.
Certa vez,ela tinha visto um show dos Crop Circles num bar em São Paulo e gostou. Tinha o contato de Mila Cox e logo a acionou.
Mila Cox, Zími e Silvano foram convidados para dormirem na casa da aniversariante depois do show, mas já tinham decidido que seria melhor enfrentar o desconforto de dormir na Kombi do que dormir na casa de alguém cujos costumes são desconhecidos, e principalmente para não causar estranhamento a uma família tradicional de classe média.
Para piorar, descobriram assim que chegaram que a menina era filha de um militar, que logicamente fora adestrado a vida toda, e impunha aos filhos suas filosofias obtusas.
Numa conversa que tiveram naquele dia, constataram que a garota se rebelava contra os valores bélicos e de ódio defendidos pelo pai, e isso por si só era uma vitória.
Depois do fim da festa, pararam a Kombi perto de um posto de gasolina onde havia uma loja de conveniências que não fechava, e usavam o banheiro que havia ali até que estivessem em bom estado físico para pegar a estrada de volta para São Paulo, depois de amanhecer.
Esses shows com cachê eram raros para eles, e precisavam fazê-los quando surgiam, mesmo que o público não fosse tão compatível com a proposta musical que apresentavam.
O principal argumento de Mila Cox em relação à necessidade de shows com cachê era o alto preço das cordas para contrabaixo, que é seu principal instrumento.
Para se sustentarem, tinham trabalhos remunerados.
Mila Cox e Zími são copywriters e trabalham em casa. Silvano faz carretos e entregas com sua Kombi.
Não se tratava, portanto, de sonhar com fama e fortuna através da música. Era muito mais uma questão de abalar certas estruturas o máximo que pudessem.
O fato de o Brasil ser o túmulo do rock os incentivava, ao invés de desanimá-los.
Não existia para eles o desejo de mudar o mundo. O que importava era ser oposição aos patéticos costumes de normalidade estabelecidos, e um dia talvez serem lembrados por isso.
Assumiam-se como parte de uma minoria que despertou cedo contra a ridicularidade do senso comum, que dava atenção a casamentos e separações marqueteiras e oportunistas de cantores e cantoras picaretas que emporcalham o mainstream, em espetáculos que transbordam vulgaridade e ostentação.
A distância da capital para Catanduva não é absurda, mas os quase quatrocentos quilômetros da ida e mais os quatrocentos da volta, depois de dormirem poucas horas nos bancos de trás da Kombi deixaram Zími cansado, e isso ficou claro no dia seguinte.
Não foi um show comum para eles.
Parte do público era composto por motoqueiros que não tinham o perfil do público que costumava gostar da banda.
Não pareciam ser apreciadores de rock alternativo.
Aparentavam gostar de clássicos do rock, músicas famosas,tocados por bandas cover e rádios FM.
Zími e Mila Cox acharam que havia ali, de forma parcial, um clima reacionário.
Ao contrário de Zími e Silvano, Cox quase nunca bebia antes dos shows.
Ela era adepta dos cogumelos mágicos, e parecia estar sempre bem nos momentos que exigiam responsabilidade, bom senso e espírito elevado.
Deixava para tomar alguns drinks depois de encerrar as apresentações, evitando excessos, principalmente em público.
Mas naquele dia Zími e Silvano a viram tomar duas doses de tequila minutos antes de subir ao pequeno palco que os deixava quase na mesma altura da platéia.
Silvano tomava a tequila naquele momento, porque já tinha feito seu show, abrindo o evento, ainda durante o dia, e só teria que dirigir de volta para São Paulo na manhã seguinte.
"Fodeu, ela vai aprontar alguma!" - disse Zími para Silvano.
Zími já segurava suas baquetas, a Silvano estava sem camisa, com uma toalha sobre os ombros, tomando a tequila que havia levado, enquanto vendia seus discos, cópias em vinil de sua coletânea de singles lançados antes na internet.
Assim como Zími, Silvano agora esperava momentos oportunos para beber.
Ambos pareciam agora congregados marianos, se comparados ao que eram quando mais jovens.
Mila Cox e Zími subiram no pequeno palco, bem próximos ao público, e ela disse, antes de iniciar a primeira música:
"Nós não vamos tocar 'Free Bird',nem 'Smoke on the water' e nem 'Born to be wild'!!!"
E começaram o show com uma música em português chamada 'A tortura nunca termina'.
Os supostos reacionários apenas olhavam aquilo, embasbacados, pensando em como apenas aquela garota jovem e aquele tiozinho alto e magro conseguiam fazer um som tão estridente, estranho para eles, e ainda assim, consistente e convincente.
Antes de iniciar a música seguinte, ela falou:
"O fascismo é o triunfo da barbárie, e fazemos música pra manifestar nosso desprezo a essa tendência crescente e vergonhosa!"
Depois deles veio o show de uma banda chamada Circa Now, que também fugia dos clichês, e por último, a banda Main Drags, que parecia imitar os Small Faces, mas também era legal.
De volta àquele momento em que já estavam novamente em São Paulo, Mila Cox perguntou para um Zími quase prostrado, se ele tinha algum esboço de música nova.
O esquema de trabalho de composição da dupla, formada por Mila Cox no baixo e vocal, e Zími na bateria e vocal, acontecia quando ela musicava letras escritas por Zími.
Ele escrevia em forma de poemas, para ironizar os "poetas do rock", e ela musicava o texto, usando elementos barulhentos, pouco convencionais e menos ainda palatáveis aos ouvidos médios.
Zími respondeu à pergunta de Mila Cox:
"Estou em parte sossegado, porque lidar com aqueles motoqueiros gordos de bandana e barba que estavam no show não foi tão difícil. Eram topeiras que enchiam o cu de cerveja e queriam ouvir músicas conhecidas e palatáveis. Mas também estou preocupado com uma tendência monotemática que talvez a gente esteja tomando. Temos falado sobre como a sociedade é podre, como a maioria das pessoas é escrava sem nem ao menos saber disso, sobre como toda a classe política é podre, que a mentalidade da classe média é desprezível, e repetindo sobre a necessidade de abaixar as calças de ídolos inatingíveis e mijar em tótens corporativistas."
Com muito sacrifício orçamentário, Zími pagava desde os dezoito anos a previdência social, para que um dia recebesse aposentadoria.
Tinha quarenta e seis anos, e dizia sentir no ar o peso dos anos que faltavam para que pudesse estar aposentado, ainda que recebendo um valor modesto, para poder dedicar mais tempo à música.
Minimalista que era, pretendia que essa dedicação à arte fosse em tempo integral.
"Se você não quer repetir os temas, pode então tocar música instrumental, tocar jazz, por exemplo, sem letras nas músicas. Aí teria que tocar melhor, e seria um instrumentista de verdade e não apenas um tocador de bateria. Duvido que queira escrever sobre outros temas."
Zími falou:
"Você tem alguma sugestão de pauta pra próxima música?"
Então contou para Zími o que havia presenciado até minutos antes, na padaria.
Bueninho, como era conhecido Almir Bueno ,folclórico vizinho do prédio em que moravam, tinha marcado um rolê com uma mulher. mas estava atrasado e tão horrendamente bêbado, que se conseguisse chegar ao seu apartamento, poderia se considerar detentor de uma façanha olímpica.
Dentro do apartamento, ele havia perdido a guerra para os percevejos.
A coisa chegava ao ponto dele não se sentir em casa, mesmo estando em seu apartamento.
Então Zími falou: "Nossa, ele está todo cagado! Você acha que isso é tema de música?"
Mila Cox: "Pode ser, dependendo da forma como você trabalhar o tema."
Zími: "Será que ele ainda está na padaria?"
Mila Cox: "Caso ainda esteja, seu estado deve ser o mais calamitoso possível. Quando eu subi, ele já estava bem feio."
Zími: "A coisa mais louca dessa história é que ele de fato consegue algumas mulheres. Sempre fica bêbado no rolê, mas dessa vez ele queimou a largada."
A repetição dos temas abordados nas músicas era, a princípio, uma característica da banda que tinham juntos, que na verdade era uma dupla, formada por Mila Cox no baixo e vocal, e Zími na bateria e vocal.
Compensavam isso com a diversificação dos elementos musicais que usavam em diferentes músicas. No fim das contas, o gênero era o chamado Noise, mas que podia conter até partes jazzístícas em alguns momentos.
Ele escrevia as letras e ela as musicava, com elementos barulhentos, pouco convencionais e menos ainda palatáveis ao ouvido médio.
Com muito sacrifício, Zími pagava desde os dezoito anos a previdência social, Tinha quarenta e seis, e dizia sentir no ar o peso dos anos que faltavam para que pudesse receber uma aposentadoria, ainda que ínfima para poder dedicar mais tempo à música. Minimalista que era, pretendia que essa dedicação à arte fosse em tempo integral.
"Vocè pode então tocar música instrumental, tocar jazz, por exemplo, sem letras nas músicas. Aí tocaria melhor, e seria um instrumentista e não apenas um tocador de bateria. Duvido que queira escrever sobre outros temas."
Zími falou:
"Você tem alguma sugestão de pauta pra próxima música?"
Então contou para Zími o que havia presenciado até minutos antes, na padaria.
Bueninho tinha marcado um rolê com uma mulher. estava atrasado e tão horrendamente bêbado, que chegar ao seu apartamento, no prédio em cima da padaria em que ele estava, seria olímpico.
Dentro do apartamento, havia perdido a guerra para os percevejos.
A coisa chegava ao ponto dele não se sentir em casa, mesmo estando em seu apartamento.
Então Zími falou: "Nossa, ele está todo cagado! Você acha que isso é tema de música?"
Mila Cox: "Pode ser, dependendo da forma como você trabalhar o tema."
Zími: "Será que ele ainda está na padaria?"
Mila Cox: "Caso ainda esteja, seu estado deve ser o mais calamitoso possível. Quando eu subi, ele já estava bem feio."
Zmi: "Eu tinha em mente escrever sobre o fato de que quando nascemos, o mundo já estava todo cagado e nossas circunstâncias permitiam que, na máximo, cada um fizesse individualmente essa mudança. É pouco encorajador, porque em casa e na escola, éramos lançados pra viver numa normalidade que justificava o lodo em que a humanidade estava atolada. Mas já fizemos várias músicas sobre isso."
Mila Cox: "Aprenda a tocar Jazz, compre um terno e inicie uma nova fase na carreira. Eu manteria o nome da banda e seguiria, com uma bateria programada. Não seria a mesma coisa, mas eu já pensei nisso porque não sei até onde você tem saco pra fazer as coisas que é obrigado quando temos show marcado. Fico pensando se não é essa vida que te faz beber tanto."
Zími:"Isso é justamente o que me move pra esse rolê improvável pra um brasileiro da minha idade. A balada está pronta. Cheia de junenis descontrolados que me fazem lembrar de quando eu tinha a idade deles e fazia muito pior, porque as pessoas não tinham naquele tempo as bolhas que tem hoje pra se isolarem, que são os celulares. Antigamente não era melhor. Era uma merda também, por outros motivos. Mas agora a tecnologia permite a formação de bolhas até, e talvez sobretudo, em mesas de bar."
Mila Cox: Escreva sobre isso!"
Zími: "É tema repetido!"
Mila Cox: É repetido, mas é relevante! Mude as palavras e repita o tema! Você escreve bem! Fez faculdade de Jornalismo!"
Zími: "Sim, as pressões quando eu tinha dezoito ano eram grandes pra que eu estudasse. Diziam que se eu não me formasse, me tornaria morador de rua, ou na melhor das hipóteses um escravo assalariado e explorado até o tutano, e ainda teria que agradecer pela oportunidade. Mais tarde veio a internet e estamos vendo como as falhas de comunicação por falta na escrita são destrutivas."
Mila Cox: "Eu sofro pressão pra entrar na faculdade também, Principalmente da minha avó."
ZÍmi: "Quando eu tinha a sua idade, já estava terminando o curso de jornalismo. Nunca precisei mostrar o diploma pra ninguém. No seu caso, é algo dispensável. Provavelmente você não precisa mesmo. Sei que de uma forma ou de outra, você é obrigada a estudar de qualquer jeito. Eu vejo você estudando todos os dias. Mas no meu caso, a formalidade do diploma era algo indispensável. Eu sinto como se uma dívida com a sociedade tivesse sido paga, como se o que eu dizia tivesse mais credibilidade por causa da graduação. Até mesmo pelo fato de você atribuir minha capacidade de escrita ao curso de Jornalismo. Mas eu acho que você não precisa disso. O Hemingway foi pra Primeira Guerra Mundial com dezessete anos, como voluntário, ao invés de ir pra faculdade. E você se envolveu num projeto de autogestão, que as pessoas comuns considerariam inviável de acordo com a normalidade que essas pessoas vivem. Sem dúvida é uma afronta até pra sua geração. Então, imagine pra sua avó o que isso significa! O conservadorismo pode vir por questões geracionais. A transição pro mundo com internet deixou muita gente no passado. Muito lixo também veio à tona, porque agora qualquer retardado tem voz ali, o que se tornou uma regra. Já cheguei a pensar que corríamos o risco de sermos cancelados em algum momento por ofender gente imbecil. O cancelamento é a arte do medíocre."
Antes que Mila Cox respondesse alguma coisa, Silvano entrou no apartamento deles para mostrar sua música nova, chamada 'Bones', que na avaliação de Mila Cox e Zími, tinha potencial para se tornar um clássico do underground, e potencializou a vontade de Cox de fazer mais uma música inédita.