O FRIO DOS REVEILLONS
Era trinta e um de dezembro de dois mil e quatro, e a neve caía sob quinze graus negativos.
A cidade murada de Québec se preparava para receber o Ano Novo, envolta na beleza e na magia que lhes são próprias, porém um silêncio misterioso pairava no ar, diferentemente dos Reveillons das praias dos trópicos.
Vez ou outra, talvez, podia-se ouvir resquícios da explosão de alguns fogos de artifício lá longe, mas a neve continuava a cair muda e fria , indiferente aos piscas iluminados e aos belos enfeites natalinos que se via por todos os cantos.
O reveillon seria confinado a uma casa noturna, aonde a orquestra preparava os primeiros acordes para enfeitiçar o ar...
Casais chegavam elegantemente trajados e lá em cima, sobre os últimos degraus da longa escadaria, esfumaçavam o ar quente que expiravam dos pulmões para dispensarem seus overcoats e luvas ao gentil recepcionista, que atenciosamente os acompanhava ao átirum do restaurante aonde a ceia de reveillon seria servida à francesa.
Ouvia-se algum discreto burburinho e num cantinho do recinto lá estavam eles.
De meia idade, bonitos e impecavelmente trajados, compunham um casal que chamava a atenção...pelo silêncio.
De postura ereta e educada frente à mesa, com os guardanapos que repousavam sobre seus joelhos, apenas assentiam com a cabeça às primeiras taças de champanhe. Nehuma palavra. Sequer se entreolhavam.
Ela, de cabelos artificialmente armados e fixados na nuca, brilhava entre paetês prateados que desciam sobre uma saia de sede escura.
Ele destacava-se na gravata- borboleta negra, e nos demais acessórios dum terno marinho de minúsculas riscas de giz.
Tão logo se aproximaria a chegada dos tempos.
Para os que não eram daquele país, a festa era a expectativa, afinal seria uma novidade, e a ansiedade desnorteava o meu coração.
Mas meus olhos, vez o outra, continuavam a acompanhá-los.
Aproximou-se a tão esperada contagem regressiva, que para o meu espanto foi igualmente silenciosa, apenas contei-a dentro de mim. Esperei pelos fogos. Nada!
Pelos cumprimentos...poucos!
Pelos "Happy New Years": alguns, ao menos entre nós.
Soube que adentrávamos dois mil e cinco ao conferir meu relógio de pulso, e ao perceber que o garçon se aproximava com os brindes e as entradas. No andar de cima a orquestra começou a tocar alguns clássicos.
Procurei pelo casal. Tacitamente continuavam alí, já no epílogo da sua festa...
Receberam as taças, a entrada , o prato principal, a sobremesa, e de olhares rebaixados e fixos à mesa, cumpriam os rituais de mais um reveillon.
E o seu silêncio alí...a me incomodar...
Terminado o jantar, levantaram-se solitariamente individualizados, recolheram seus pertences deixados na sala da recepção, e devidamente amparados para enfrentar a neve, desceram as escadarias a se perder de vista na noite fria de Ano Novo...entre tantas luzes que igualmente piscavam mudas.
Acessamos ao andar de cima, e a orquestra soou pela noite a atravessar o tempo e a quebrar o silencio...
(Conto verídico)