Green

Green

“Pitoco e Pelado, por favor, fiquem quietos.”

“Sou eu que vou contar a nossa história. O narrador seria o “Agitado”, que é o primogênito da família, mas ele desistiu porque não consegue se controlar. Fica tossindo e balançando a cabeça sem parar.”

“Vou começar”

Eu me chamo Green, é isso mesmo. Não parece, mas é nome próprio. Foi escolha da minha mãe adotiva. O motivo dela ter me dado este nome eu nunca entendi, mas gosto de ser chamado de Green.

Contarei para vocês a história da minha família.

No mundo em que nascemos, éramos cinco: minha mãe, os meus três irmãos, que vocês já sabem como se chamam, e eu. Bela é nome da minha mãe. Ela ainda continua vivendo e morando no mesmo lugar onde a conhecemos. Mas nós, os filhotes de “duas patas”, já estamos voando por outros mundos.

Vou iniciar por um dos acontecimentos mais importantes das nossas vidas. Está bem?

O dia em que a mamãe nos resgatou e nos adotou

Era o fim de janeiro, um pouco antes das nove e meia da manhã, a escuridão não dava uma trégua. Há dias estávamos sozinhos confinados num pequeno espaço, que depois viemos a saber que era o forro do telhado da casa. Famintos e com muita sede, pois como o Pitoco repetia constantemente, havíamos nascidos no nosso próprio túmulo. Ninguém nos alimentava, deitados esperávamos a morte chegar, quando de repente o meu irmão Agitado levantou a cabeça e com muito esforço murmurou: “escutem... estão batendo aqui por perto”.

Naquele instante, uma esperança de viver surgiu dentro de mim e, acredito, que também nos meus irmãos.

Poucos segundos depois, surgiu uma claridade e ouvimos, pela primeira vez, um som que tinha uma sonoridade maravilhosa, mas que naquele momento nada entendemos. Entretanto, hoje, depois do nosso convívio com Bela, a nossa mãe adotiva, posso contar, no mesmo linguajar de vocês, os acontecimentos que marcaram as nossas vidas.

No surgimento da claridade, quando estávamos quase deixando de existir, ao mesmo tempo em que a luz entrava, Bela, de cima de uma pequena escada de alumínio, enfiou uma das mãos no pequeno orifício que havia terminado de fazer no lambri do forro da casa e nos resgatou um a um pelo mesmo buraco em que vimos a luz da vida entrar.

Ainda lembro que ela ao descer da escada, nos pegou com as duas mãos em forma de uma concha e, demonstrando felicidade no modo de nos acariciar, disse: “eles estão vivos”.

Sem perda de tempo, ela providenciou uma pequena seringa e nos deu água levemente adocicada e suco de mamão. Como era a nossa primeira refeição na vida, Bela precisou de muita paciência para nos alimentar. Era o nosso primeiro contato com outro ser vivo.

Pode parecer que estou exagerando, mas até então vivíamos na escuridão total, sem qualquer tipo de refeição, respirando com dificuldade devido a pouca circulação do ar e num silêncio absurdo, o qual vez por outra era quebrado com a tosse e o chacoalhar da cabeça do Agitado.

Aos poucos fomos aprendendo a comer. Não foi fácil, mas com a paciência e o carinho da Bela, desenvolvemos uma técnica de sugar os alimentos e a água do bico de uma pequena seringa. O Pelado teve muita dificuldade de se adaptar e quase morreu de tão magro que ficou. Mas, na noite do segundo para o terceiro dia, ele conseguiu “mamar na seringa”. Sei que o correto seria dizer “sugar na seringa”, mas prefiro falar “mamar na seringa”.

Tão gostoso quanto o alimento, eram também as carícias que recebíamos na hora do lanche. Até hoje, quando fecho os olhos, ainda sinto o carinho das mãos da minha mãe adotiva passando pela minha cabeça e ouço: “Green, muito bom! Você comeu tudo! Logo logo vai apreender a se alimentar sozinho”

Era tão bom comer no colo da Bela, que sugeri aos meus irmãos, e eles toparam, que postergássemos ao máximo o aprendizado da autoalimentação.

O nosso primeiro dia de vida, se assim eu posso considerar, foi maravilhoso. Depois do resgate e da primeira alimentação, fomos colocados em uma caixinha de papelão forrada com pedaços de flanela, a qual passou a ser nosso local de descanso.

À noite, a nossa caixinha era colocada no mesmo quarto da mãe Bela, pois a qualquer hora da noite que gritássemos de fome, ela nos alimentava com a seringa.

Assim, continuamos por dias e dias. Da caixinha para colo e do colo para caixinha.

Os dias fora da caixinha

Como nada é para sempre na vida, exceto as mudanças, a fase em que passávamos o dia inteiro dormindo dentro da caixinha, e só fazíamos barulho quando estávamos com fome, terminou quando Bela, numa manhã, por volta das seis horas, encontrou o Agitado e o Pitoco passeando calmamente pelo assoalho do quarto depois que eu o Pelado os ajudamos a sair da caixa.

Naquela época, quando iniciamos o treinamento para aprender a andar, junto com os primeiros passos vieram também as mudanças físicas. A nossa aparência modificava-se dia a dia e, segundo a mãe Bela, deixamos de ser feios. Uma penugem verde surgiu em nossos peitos, asas e cabeças. E assim passamos a ouvir constantemente: “veja como os filhotes estão ficando lindos”.

Cada vez que ouvíamos elogios, estufávamos o peito, levantávamos a cabeça e desfilávamos como soldadinhos pelo piso da sala. Bela, nos ensinando a andar bem devagar, ia na frente nos mostrando como desviar dos obstáculos, essas coisas que lotam todas as casas, se não me engano, vocês chamam de móveis ou mobília.

Foi caminhando na sala que passamos a admirar a natureza. A casa em que nascemos fica, ainda está lá no mesmo local, num lindo vale na zona rural, bem distante do mundo urbano.

Quando vi pela primeira vez, pelas enormes janelas de vidro que havia em todas as paredes da sala, o céu azul, os galhos verdes das árvores, o topo das montanhas tocando suavemente nas nuvens brancas e o espaço que circundava a casa, fiquei encantado por estar vivo. De tanta felicidade voei, ou pulei, do chão para o colo da minha mãe adotiva para agradecer por ela ter-me resgatado do túmulo em que eu havia nascido.

Naquele momento, desejei conhecer toda aquela imensidão do mundo que podia avistar do chão da sala do Abrigo.

A penugem cresceu, ficamos cobertos de penas verdes e fomos “classificados”, pela nossa mãe adotiva, como uma espécie de ave chamada “maritaca”. Exceto o Pelado que continuava com a aparência de “pinto pelado”, como muitas vezes era chamado por todos que vinham nos visitar.

Num dos últimos dias de marcha na sala, fomos apresentados às amigas de Bela. Ela colocou todos nós em uma posição um tanto formal, quase uma cerimônia, e pausadamente falou:

“Hoje, vocês irão conhecer os meus amiguinhos de quatro patas, está bem?”

“Vamos lá: Green, Agitado, Pitoco e Pelado, aqui na frente de vocês estão”

E passando a mão carinhosamente na cabeça de uma cachorrinha de cor cinza com tons amarelado, disse: “esta é a Menina”.

Repetindo o gesto, continuou falando: “Aqui está a Defesa”, uma cadela be m adulta com pelo na cor preta. “E esta pequeninha se chama Branquinha”.

Ficamos encantado em conhecer as amigas da mamãe. Sem atropelos, com respeito e amizade, nós, os duas patas, e os quatro patas passamos a habitar a mesma sala da casa. Não lembro de um único incidente que possa ter ocorrido. Lá era, ainda é, o Abrigo dos Amigos. Lá, com certeza, vocês encontrarão carinho e amizade.

Já estou cansado de tanto falar, acho que não vou conseguir contar tudo que aconteceu no primeiro mundo em que vivemos e conhecemos a Bela. Mas como tem passagens que não podem ser deixadas no esquecimento, vou, com base no meu julgamento crítico, selecionar as mais relevantes e continuar falando com vocês mais um pouquinho.

“Oi Pitoco, pode deixar. Não vou pular o nosso passeio de carro”.

O dia em que fomos conhecer o mar

Numa certa manhã, quando eu ainda estava no chão aguardando a minha vez de ir para o colo de Bela e sugar no bico da seringa o meu desjejum, percebi que a minha mãe estava um pouco eufórica, com ar de quem estava vivendo momentos de felicidades e não parava de falar com o Pelado, que devido ao seu pouco desenvolvimento era sempre o primeiro a mamar.

“Tá bom, Agitado! Eu já disse para o pessoal que prefiro falar mamar, mas sei que o correto é sugar. Posso continuar”?

Quando chegou a minha vez de ir para o colo, Bela me disse: “Green, hoje vamos todos fazer um passeio de carro. Preciso resolver algumas coisas na cidade e só devo retornar amanhã. E como você e seus irmãos, por incrível que pareça, ainda não aprenderam a se alimentar sozinhos, terei que levá-los. O bom é que de onde ficaremos hospedados vocês poderão ver o mar. Acho que serão os primeiros e únicos pássaros aqui do vale que terão a oportunidade de ver o céu tocar no mar.

Naquele momento, por pouco não contei à Bela que o não aprendizado fazia parte de um plano nosso para ficarmos mais tempo no colo. Mas devido a minha curiosidade de conhecer o mar, fiquei de “bico calado”.

Conhecer a cidade, ver a imensidão do mar até o horizonte, apreciar os pássaros marinhos em seus voos rasantes foi maravilhoso. Eu adorei. Mas nenhum de nós gostou de andar de carro. Viajamos dentro de duas caixinhas de papelão, eu e Pelado em uma e o Pitoco e o Agitado em outra, ambas caixinhas no colo da mãe adotiva.

Logo no início da viagem eu e meus irmãos ficamos enjoados com o movimento do carro. Foi vômito e cocô para todo lado. Bela tentava nos ajudar. De vez enquanto nos retirava da caixa e pedia para o carro parar.

Foi a primeira e a última vez que andamos de carro. No dia seguinte em que voltamos para o Abrigo, lá no vale, com receio de novos passeios começamos a nos alimentar sozinhos.

Poucos dias depois de largamos o “bico da seringa”, Bela nos reuniu no canto da sala, bem perto da janela de vidro, e, apontando para o mundo azul que circundava o vale, nos disse:

“Amanhã será um dia muito importante. Iremos para o jardim da parte de trás da casa e lá iniciaremos o treinamento de voo”.

Percebendo a perplexidade em que ficamos, ela, num tom de voz bem tranquila disse:

“Pássaros não caminham, pássaros voam”.

Ainda lembro o desespero que o Pelado ficou. Ele se aproximou do Agitado e perguntou: “Mano, fala para mãe que não precisamos voar, caminhar no piso da sala é mais seguro”.

Passado o susto inicial de nos lançar no vazio, dia a dia melhorávamos a nossa performance nos voos. A nossa mãe adotiva vibrava mais do que nós naqueles treinamentos.

Ela efetuou várias filmagens com o celular e não se cansava de compartilhar e mostrar os vídeos às pessoas que visitavam o sítio.

Nos dias de treino, a Menina, a Defesa e a Branquinha ficavam sentadas na grama nos vendo voar. Foi uma das fases mais alegres em que vivemos juntos à Bela e suas amiguinhas de quatro patas.

O dia da despedida

Depois da fase mais alegre no vale, onde presenciei inúmeros momentos de felicidades vividos por Bela, veio o período mais triste da nossa história.

Serei bastante sucinto nesta parte, pois não gosto nem de lembrar dos meus últimos momentos lá no mundo em que vive a nossa mãe adotiva.

Num certo dia, com o céu do amanhecer e antes de Bela nos levar para um dos últimos treinamentos de voo, Agitado, quase murmurando, disse:

“Green, Pitoco e Pelado, como sou o irmão mais velho, a mim foi confiado um segredo da nossa família. E agora chegou a hora de vocês saberem.”

E, mantendo a voz tranquila, continuou:

“Em breve, nós teremos que seguir para outros mundos. Não podemos continuar aqui neste vale. Nós, pássaros de Deus, não nascemos para ficar em um único mundo”.

Depois de várias perguntas e respostas do Agitado, entendemos que não tínhamos como mudar o que ele chamou de “vidas e destinos”.

Aí eu propus, e meus irmãos concordaram, que seria melhor para todos, principalmente para Bela, que partíssemos em dias diferentes e um de cada vez.

E assim aconteceu. O Primeiro a se despedir da Bela e partir foi o Agitado, o primogênito, em seguida o Pitoco, depois eu e por último o Pelado, o caçula.

Quando eu estava partindo, ouvi ao longe a tristeza na voz de Bela:

“Green, por favor, não vá. Fique comigo.”

Naquele instante, prometi a mim mesmo que buscaria um modo de terminar com a tristeza que estávamos causando à Bela.

Antes de terminar e agradecer a quem ouviu até o final a nossa história, gostaria de contar um segredo que nem os meus irmãos sabem.

Vez por outra, contrariando o meu “destino”, volto ao mundo em que nasci, pouso na “figueira secular” e fico observando o movimento no Abrigo dos Amigos.

Em um desses pousos na árvore em que aprendi a voar, Bela me reconheceu, pois ouvi o que ela disse para suas amiguinhas de quatro patas:

“Menina, Defesa, Branquinha, vejam quem veio nos visitar”. E, apontado para mim, disse:

“É o Green.”

Ontem, em minha última visita ao Abrigo, quando cheguei próximo do vale avistei uma maritaca na “figueira”. Aproveitando a descida pousei num galho da goiabeira ao lado e fiquei observando.

De repente Bela apareceu no jardim e, apontando para o galho da “figueira”, disse:

“Menina, Defesa, Branquinha, vejam quem veio nos visitar”.

“É o Green.”

Agora sim, posso seguir o meu destino em outros mundos, pois não mais percebi tristeza na voz de Bela.

Ela entendeu que nós, pássaros de Deus, nunca morremos. Apenas nos tornamos o seu “querido Green” voando pelos vales.

Sérgio Coutinho

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 27/04/2024
Código do texto: T8050722
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