Capitão Damasceno
Quando cheguei à Baía da Traição, com apenas vinte e dois anos completos, jamais poderia supor que, na mansa velhice, tendo vivido tudo ou mais, a minha maior angústia seria do vazio além-vida; ou melhor, o medo da morte.
Nos caminhões abarrotados de mantimentos para a guerra, com seus numerosos metais de matar gente, seus suprimentos de manutenção do horror, aptos todos do batalhão a guerrilhar, sentia que tudo aquilo não passava de uma fantasia distante; quem na tenra idade não foi um pouco ingênuo? A juventude é uma maravilhosa utopia onde a última coisa que nos passa pela cabeça é que, súbita ou lentamente, nos seus termos, iremos partir. A dádiva que nos encerra infalivelmente a todos parece estar distante, num horizonte longinquo e inacessível — mesmo diante do terror, mesmo diante da maldade humana.
Mas divago, divago, e mais tarde Clarice, estando por chegar, não pode ver-me assim, de olhos tristes e embotados; espera colo, afago de pai, e não a crueza da realidade humana.
É preciso preservar os pequenos. Continuo.
Nos floreios do tempo, fomos alocados numa praia imensa, na costa litorânea da Paraíba, um município afastado da grande capital e, no entanto, perto suficiente dos postos de trabalho designados pela força maior do exército brasileiro e no qual tive meu primeiro contato com os povos indígenas da região — Os Potiguaras.
Disseram-me, as bocas muito eloquentes das ruas, que os Poti haviam trucidado os colonizadores portugueses, expulsando-os a custo de muita luta e de muito sangue. Foi no passado, confirmaram, não agora, foi no remoto que isso acontecera. O povo havia esquecido. Agora era aquilo que se via: uma cidade formada não só pelos reais donos do lugar, dos nativos, mas também da mistura desses com estrangeiros, forasteiros de outras terras e paragens, de cidade e de reinos; e eu achei bom que assim agora fosse, porque planejava enraizar-me por aqui, e se o mundo era tão grande, e cabia todo tipo de gente, então éramos todos de um canto só — pensava assim.
Foi no Rio do Gozo que a mãe da Clarice se apresentou a mim, com os traços tão característicos e próprios, e me senti numa atração “descomum”, tão diferente quanto profunda. Era da Aldeia Akajutibiró, soube, e de lá sempre existira, como seus antepassados e sua prole. Dessa paixão vieram os primeiros rebentos, e dos filhos vieram os bens, as posses, e naturalmente uma vida boa e tranquila.
Ainda assim, enquanto escrevo, pesa-me no peito esse infausto destino, do qual, ao fim dos anos, penso não mais conseguir evitá-lo, e talvez essa tentativa de me perpetuar seja, ao cabo, uma luta contra uma grande e intempestiva força — a maior e mais inevitável de todas.
Novamente, divago.
A velhice, dissera-me um amigo, é sempre assim: um longo e prazeroso retorno ao passado. Um eterno rememorar.
Tendo assim tido uma boa vida, não quero despedir-me dela e, mesmo sem querer, esse arranjo metafísico virá, e o que será do depois? Ninguém sabe. Não há um só vivente que saiba. E Clarice logo chegará, e o que eu lhe direi? Melhor: o que lhe dirão do depois? Quando regressar à casa de quintal arenoso, de tetos firmes, com a qual a cheia da maré, em sua meninice, invadia sem pudor sempre que lhe aprouvia, onde, mesmo com a salgada água batendo-lhe no pé, minha Clarice brincava, banhava-se naquelas turvas águas, achando tudo sublime, o que lha dirão? Será preciso uma voz branda no ouvido, um abraço apertado da mãe e dos irmãos, ou somente o mínimo vislumbre da cadeira de balanço vazia, no quintal, será suficiente para alertá-la de que o seu eterno herói e protetor não mais está lá, naquela tarde, enquanto regressa, nem em nenhuma outra tarde a partir de então? Esperta como é, sei, entenderá de imediato o sucedido e praguejará contra o mundo, sim, contra o mundo, mesmo que esse tenha só exercido seu direito de natureza, encerrando em si aquele fim, não exigindo sobre mim um direito marcado e único, mas universal, sem distinção.