O Professor Mia

O Professor Mia

Passava um pouco das dez horas e chovia forte no centro da cidade quando Denzel resolveu que não iria mais trabalhar naquele dia.

Ao diminuir a velocidade do seu Ford Fusion de cor prata e tomar o caminho de casa, ele recebeu uma chamada no aplicativo do celular. E, conforme fazia habitualmente desde que havia, aos sessenta e seis anos, decidido trabalhar como motorista de aplicativo, parou o carro no primeiro recuo que encontrou para verificar a chamada.

O cliente estava na Líbero Badaró próximo ao número 425, no centro Histórico de São Paulo, não muito longe do cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João, onde ele se encontrava naquele momento. Então, alguma coisa aconteceu com Denzel, pois ele, diferente do seu modo de agir, sem nada analisar, desistiu de seguir para casa e resolveu atender à chamada.

No instante em que um homem, beirando a idade dos sessenta ou, talvez, sessenta e cinco anos, elegantemente trajado num terno escuro e carregando uma mala de viagem, dessas que devido ao tamanho não precisam ser despachadas nos aeroportos, abriu a porta traseira do “Fusion”, intuitivamente Denzel perguntou:

— O senhor é moçambicano?

No minuto seguinte, Denzel refletiu e, sem esperar qualquer manifestação do passageiro, disse:

— Senhor, boa tarde, peço-lhe desculpas pela minha grosseria. Por gentileza, desconsidere a pergunta sobre a sua nacionalidade.

— Por favor, para onde deseja ir?

— Boa tarde, amigo. Tudo bem, não há o que desculpar. Vamos para Cidade Universitária no Butantã, o senhor sabe onde fica? — disse o passageiro, num tom de voz bem tranquilo, enquanto se acomodava junto com a pequena mala no banco de trás do carro.

E antes de ouvir a resposta do motorista, o passageiro, com um sorriso no rosto, demonstrando simpatia, respondeu:

— Sim, sou moçambicano. Me chamo Simon. Sou de Mavalane, um bairro da cidade de Maputo. Você já esteve no meu país?

— Prazer em conhecê-lo Simon, sou Denzel. É para o Campus da Universidade de São Paulo que deseja ir. Certo?

— Sim, por favor, vamos direto para lá.

— Ok, vou usar o Waze para verificar o trajeto com menos trânsito. E com relação à sua pergunta, não, ainda não visitei o seu país.

— Lá no Campus, em qual faculdade o senhor quer ficar? — perguntou o motorista já com o carro em movimento.

— Tenho um compromisso, uma palestra, na Faculdade de Filosofia e Letras. E como é a minha primeira vez naquele Centro Acadêmico, gostaria de chegar com antecedência para conversar com os meus anfitriões e agradecer o convite formulado.

— Ótimo, senhor Simon. Que horas será a sua apresentação?

— Às quatorze.

— Então, temos bastante tempo. Estaremos lá em quarenta ou cinquenta minutos — olhando para o relógio do painel do carro — Denzel concluiu — um pouco antes do meio-dia chegaremos à USP.

— Como você adivinhou a minha nacionalidade?

— A pergunta foi feita sem nenhuma intenção. Foi espontânea. Motivada, talvez, pela sua semelhança com um grande amigo meu, também moçambicano. E não posso desconsiderar que lhe peguei bem próximo do Consulado de Moçambique. Esse meu amigo mora ou morava, não sei mais, pois há anos deixou de fazer contato, numa cidade ao norte de Maputo, chamada Veira. Não, não é Veira. É Beira — concluiu o motorista.

— Isso, Beira, uma bela cidade, é a capital da província de Sofala. — disse Simon, enquanto mexia no bolso interno do paletó.

Denzel, vez por outra espiando o passageiro pelo retrovisor interno, deu continuidade à conversa.

— Estive por duas vezes na África, mas como na época ainda não conhecia o Professor Mia, o meu amigo e seu compatriota, Moçambique não fez parte do roteiro da viagem. E até hoje, apesar da vontade, ainda não tive a oportunidade de visitar o seu país — disse Denzel, como se estivesse conversando com um velho companheiro.

No mesmo tom de voz, Simon disse:

— Nunca é tarde, ainda pode viajar para Moçambique e visitar seu amigo em Beira. Há voos quase que diários daqui de São Paulo para Maputo.

Tão perceptível como a luz do sol era o entendimento que estava ocorrendo naquele momento entre Denzel e Simon, ambos na faixa etária dos sessenta anos e afrodescendentes.

- Não sou de acreditar em coincidências, mas hoje realmente estão acontecendo coisas que... — percebendo que o passageiro estava entretido no celular, o motorista repentinamente parou de falar.

O silêncio, que não durou nem dois minutos, foi interrompido quando Simon, guardando o celular, retomou o papo com o motorista perguntando-o sobre o amigo moçambicano.

Sem responder diretamente à pergunta, Denzel reiniciou a conversa com Simon falando dos acontecimentos que precederam a chamada dele no aplicativo.

Contou-lhe que cerca de dez minutos antes tinha deixado ali próximo um rapaz também de Maputo que estava indo ao Consulado tratar da perda de seu passaporte e que, durante todo o percurso, a conversa foi sobre o professor Mia.

— E agora estou a caminho da USP, onde conheci o Mia, transportando o senhor, outro cidadão moçambicano — concluiu o motorista, enquanto olhava atentamente o trânsito à sua frente.

— Denzel, este é o seu nome. Certo?

— Sim, Denzel Luiz dos Santos.

— Denzel, você conheceu esse seu amigo, o professor Mia, na Universidade de São Paulo? Foi isso mesmo que você disse? Você frequentou àquela universidade? Trabalhou ou estudou lá? Desculpa a minha curiosidade, mas no meu país dificilmente motoristas de táxi frequentam universidades. E esse seu amigo, o professor Mia? É o autor Mia Couto? — Perguntou o moçambicano Simon.

Denzel, após um leve sorriso no rosto, esclareceu que além de ter sido aluno na USP, onde tinha se graduado em Relações Internacionais, lá também havia lecionado por trinta e cinco anos.

E, mantendo o sorriso, disse que o seu amigo não era o famoso moçambicano “Antônio Emílio Leite Couto”, cujo mundo literário o conhecia pelo pseudônimo de “Mia Couto”. Mas ele, o amigo, era conhecido como Mia porque, além de se chamar Antônio, também era descendente de portugueses e havia nascido em Beira como o autor.

Simon, projetando o corpo para o banco da frente do carro para ficar mais próximo do motorista, perguntou — E o que o seu amigo Mia fazia na USP? Também era um palestrante convidado?

— Não, não!

Depois de parar no sinal vermelho, bem próximo da faixa de travessia de pedestre, o motorista, olhando pelo retrovisor nos olhos de Simon, continuou a conversa.

— O professor Mia nunca deu uma aula sequer nas salas daquela universidade. Eu o conheci por intermédio da professora Siminele que na época era a diretora da Escola de Letras.

— Antônio do Prado, esse era o seu nome de nascimento. Certa vez, num papo de final de tarde na lanchonete, ele contou-me como havia chegado ao Brasil e expôs a sua vontade de realizar um sonho antigo, obter a cidadania brasileira para aqui continuar a sua carreira de docente iniciada lá em Moçambique. Apesar do apoio da professora Siminele, devido à falta de documentos, ele não conseguiu concretizar o seu sonho. Então, como imigrante ilegal, permaneceu no campus universitário por quase quinze anos e tornou-se uma referência para os alunos da faculdade de letras.

— Mas essa é uma longa história. A história de um homem simples que muitas vezes não tinha o que comer ou onde dormir, mas que por dedicação ao seu ideal de vida, sem nada receber ou cobrar, numa sala improvisada na lanchonete da faculdade, onde trabalhava recolhendo as bandejas e limpando as mesas, ao final do expediente dava aulas de reforço de literatura aos alunos de graduação de letras.

— Em pouco tempo, o professor Mia transformou aquele espaço num verdadeiro centro literário. Era comum, ao final da última aula do turno da tarde, muitos discentes e docentes, das diversas faculdades, dirigirem-se àquela lanchonete para ouvirem e participarem das apresentações do moçambicano. Eu adorava comparecer naqueles eventos. Ao lado do amigo Mia, um grande conhecedor da literatura mundial, aprendi muito sobre os autores africanos e europeus. E lá também, quando oportuno, Mia pedia-me para falar aos discentes sobre os livros e escritores ingleses e irlandeses, os quais eu amo ler. O encontro dos alunos e professores terminava impreterivelmente às dezenove e quinze, quando o arrendatário da lanchonete tinha que apagar as luzes e recolher as mesas e cadeiras.

— Denzel, quer dizer que você foi catedrático da USP. Muito bom. Então por que dirigir profissionalmente? É para complementar o seu salário de professor aposentado? É isso? E essa história do seu amigo ministrar aulas na lanchonete? Parece-me um pouco confuso. — disse Simon, mantendo o olhar fixo nos olhos do motorista refletidos no espelho retrovisor.

O moçambicano estava tão entretido na conversa que não percebeu que o táxi já estava estacionado bem próximo da entrada da Faculdade de Filosofia e Letras.

Denzel, após desligar o carro e virando-se para o banco de trás, falou enquanto destravava o cinto de segurança:

— Desde que fiquei viúvo, há quase nove anos, utilizo uma parte do meu tempo vago, normalmente das oito da manhã até o meio-dia, para trabalhar como motorista de aplicativo. Essa atividade me ajuda bastante, pois ameniza a solidão. Depois de quatro horas de trabalho e papo com os passageiros, volto pra casa, onde preparo o meu almoço e o da “Menina”, uma cadelinha que minha esposa, já nos seus últimos dias de vida, recolheu da rua. E que desde então divide o apartamento comigo. Assim, trabalhando de motorista, além de complementar a minha renda, tenho também a oportunidade de conhecer e conversar com pessoas de diferentes perfis todos os dias, como estamos fazendo neste exato momento. Sobre o meu amigo Mia, precisaríamos de mais tempo para lhe contar como aquele homem simples, um intelectual, tornou-se “o professor da lanchonete”.

— Senhor Simon, chegamos. — Apontando para o prédio da faculdade, onde o moçambicano seria recebido pelos seus anfitriões, disse pausadamente o motorista, enquanto dava por concluída a corrida no aplicativo.

Simon, com um semblante de quem ainda estava tentando entender o que havia acabado de ouvir, permaneceu sentado e calado. Após quase dois minutos, o silêncio foi interrompido por Denzel:

— Senhor, já chegamos. Não posso ficar parado aqui neste local por muito tempo. A qualquer momento poderá chegar um ônibus da universidade.

— Ah. Sim, desculpa. Já estou saindo.

— Senhor Denzel, seria possível hoje a sua cadelinha almoçar mais tarde? Eu gostaria de convidá-lo para um refrigerante ou se preferir um suco na lanchonete onde o seu amigo moçambicano lecionou literatura por um bom um período. Ainda tenho um certo tempo antes do início da minha palestra. Lá o senhor poderá contar-me os detalhes de como o meu compatriota tornou-se o professor da lanchonete.

Sem titubear e sem responder, o motorista ligou o carro e seguiu na direção da placa que indicava estacionamento. Logo após colocar o seu Fusion em uma vaga destinada aos docentes, Denzel respondeu:

— Sim, a Menina poderá almoçar mais tarde. Esta é a primeira vez que retorno a este Campus depois que participei de uma pequena confraternização com meus colegas que marcou a minha despedida das atividades catedráticas. Vamos até a lanchonete, talvez ainda esteja funcionando.

Em uma mesa, com quatro lugares, bem próxima do balcão, Denzel e Simon continuaram conversando enquanto, além dos refrigerantes, comiam, com bastante gosto, o prato executivo do dia: feijão preto, arroz, frango assado e um pouco de salada de alface com tomate.

Depois de saber que os atuais funcionários da lanchonete não haviam conhecido, e nem mesmo ouvido falar do professor Mia, Denzel, vez por outra, convidava um ou dois alunos que por ali passavam para se sentarem à mesa. E fazia a mesma pergunta sobre seu antigo amigo. Ninguém o havia conhecido ou tinha escutado alguma história sobre aulas de reforço ministradas naquela lanchonete.

Simon, que ouvia educadamente as perguntas de Denzel aos alunos e funcionários que por ali circulavam, percebeu que ele estava ficando apreensivo, demonstrando um certo desconforto, mantendo as mãos apoiadas na mesa, na posição de que pretendia ficar de pé.

— Denzel, não importa se as pessoas por aqui não conheceram o seu amigo. Eu acredito plenamente em você, na sua história do professor da lanchonete. — disse Simon enquanto, amigavelmente, tentava manter o parceiro sentado à mesa.

— Neste exato momento veio-me um pensamento, o qual eu gostaria de expor a você. — o moçambicano continuou falando — Desde jovem adoro ler obras filosóficas, principalmente dos autores clássicos. Então, o que estamos vivendo neste momento em relação ao professor Mia, “Marco Aurélio”, um dos Imperadores de Roma, há séculos deixou escrito em seu livro de Meditações:

“Somos criaturas de um dia, tanto os que lembram quanto os que são lembrados. Tudo é efêmero, tanto a lembrança quanto o objeto da lembrança.”

— Em breve, amigo Denzel, eu, você, o nosso encontro, tudo será esquecido pelo mundo e nós esqueceremos o mundo. Assim é a vida.

Denzel, agora reposicionado na cadeira e com um semblante tranquilo, disse pausadamente:

— Amigo Simon, obrigado pelo nosso almoço e por ouvir-me.

— Neste momento não sei se realmente o nosso encontro ocorreu, ou se ainda estou parado no cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João “onde alguma coisa sempre acontece nas nossas mentes e nos nossos corações”.

Sérgio Coutinho

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 18/04/2024
Código do texto: T8044408
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