Festa de Santa Luzia
Como de costume, o festejo atrasou e a sede está corroendo o seu corpo. Antes de sair de casa não deu tempo de comer, mas não sente fome, ainda. Procissão iniciada, muita gente espremida, rua estreita sem calçada. Sonia aperta forte a tua mão e você pensa em porque a igreja de santa Luzia estar localizada em uma ladeira de pedras. Por fora a igreja está mais linda do que nunca, toda embandeirada, barraquinhas sortidas ofertando iguarias de quermesse. Estandartes com a imagem da santa. Céu azul sem nuvens, Sol a pino. Ainda bem que eu não sou cego, você pensa.
É uma igrejinha muito antiga, período do império. Paredes altas de pedra polida, portas de madeira tão pesadas quanto as paredes. Seu interior barroco iluminado por dois conjuntos de lustres que remetem ao início do século passado, comparado ao brilho intenso de uma ensolarada manhã de dezembro o interior da capela mais se assemelha a uma cripta escura e úmida. Quando alcança a entrada percebe que a igreja já se encontra lotada. É claro que sua irmã se recusa a ficar do lado de fora: — vamos entrar. Foi a última ordem que você obedeceu na sua vida.
Conseguiram se espremer entre todos os outros fiéis graças a compaixão espontânea que cegos causam nesse dia festivo. Sonia garantiu lugar sentada, você não. Ficou espremido em posição de fila encostando-se como pode em um canto de pilar para se manter de pé.
Um calor que não condiz com a promessa divina. Você preso a multidão, morrendo de sede, derretendo cada gota de agua de seu corpo, o que te mantém em pé é algo para além de suas forças: a fé. O sonho de um dia ver a sua querida irmã começar a enxergar.
A procissão continua e tem muita gente do lado de fora se espremendo para entrar. A pequena capela, de portas abertas, aceita a todos. Verdadeiro milagre. Ela é capaz de comportar todos os fiéis do mundo. Os sinos estão tocando sem parar, há microfonia nas caixas de som, falatório, cantoria. Tem banda e coral de anjos. Além disso, o incenso, o defumador, a mistura de suores, o cheiro de vela. — Glória, glória aleluia. Glória, glória aleluia…
Que sede terrível você está sentindo e agora seu estômago grita, parecendo detectar o esforço do pipoqueiro em chamar a atenção. — Por que eu vim com essa camisa quente? Você pensa. — A graça e a paz de Deus, nosso Pai, e de Jesus Cristo, nosso Senhor, estejam convosco. Bendito seja Deus, que nos reuniu no amor de Cristo.
A igreja de repente começando a ficar escura, vultos acinzentados teimam em surgir na sua frente, suas mãos suando sem parar, sua testa parece estar cada vez mais gelada, agora seu pescoço também, mais do que a sua testa. Está cada vez mais claro que algo está acontecendo com seu corpo, alguém que você não sabe quem é olha diretamente nos seus olhos e pergunta alguma coisa sem nexo. O som de tudo vai sumindo e um zumbido de longe querendo te acalmar, mas agora nada mais faz sentido, seu corpo pesa, a luz se apaga e você some.