A CAMINHADA
“A vida, dizia-se, é uma estação de comboios em que uma pessoa quase sempre sobe, ou é obrigada a subir, para a carruagem errada”
Carlos Ruiz Zafón in O Labirinto dos Espíritos
Ele era um homem, ferido por dentro, com alguns ressentimentos na alma mas que mantinha uma pose.
- Pois é, Sr Rui, devia fazer caminhadas – dissera-lhe a clínica geral, uma jovem enérgica e magra que se tinha aparentemente desembaraçado com alguma destreza na gincana da medicina e ostentava um nome de beta, Mafalda ou Fralda e um apelido sonante,mas com um estranho ar de quem andava ao ataque num bairro mal frequentado.
“Tenho ou devo tratar esta criatura por doutora enquanto que ela me trata por senhor Rui.Haja paciência!”.
Mas a Madalena, a pedicura, mais educada e polida, também opinara:
- Então Sr Dr, tem feito as suas caminhadas?
- Por acaso, não!
- Mas devia.
Ele sorriu formalmente:
-Pois devia, eu sei senão acabo provavelmente manco, de bengala ou pior.Eu sei.
Naquele dia decidiu-se, vestiu-se a rigor,envergou o fato treino azul claro e uma toalha branca imaculada à volta do pescoço enrugado, óculos escuros, os mais pretos que conseguira arranjar e lá foi.Abriu a porta da rua e susteve-se - admirou o dia, o sol, a gentinha atarefada de todas as etnias que se movimentavam muito depressa nos passeios para cima e para baixo, numa absurda azáfama citadina.
Ele passou a esquina e viu as brasileiras gordinhas mas muito cuidadas, de turbantes à cabeça à porta do cabeleireiro da esquina, cá fora, a fazerem o sol renitente de secador.
Atravessou a passadeira branca a tempo de dar lugar aos autocarros fora de horário que entravam na rua, fazendo uma curva perigosa quase mortal e um ruído desesperado de avaria.Deu de caras com o pequeno grupo de alcoólicos sem abrigo que já estavam exauridos àquela hora, sentados na umbreira de um prédio a partilhar vinho numa embalagem de leite e a embirrar uns com os outros.
O solicitador que tinha o gabinete numa das lojas periféricas do mercado hexagonal saíu para a rua em fralda de camisa e gravata á banda, a vociferar ao telemóvel:
- A escritura já está marcada para sexta-feira e…
Atravessou outra rua e na esquina avistou o homenzinho que passava o santo dia na esplanada e no interior do café desde que abria até fechar, com uma expressão carrancuda e desconfiada em relação a tudo e a todos.
Acenou ao gerente que gritava aos quatro ventos:
- Esta vidinha de merda é a minha e viva o Benfica!
Então ele apressou o passo a custo como se fosse tirar o pai da fôrca, à procura de um espaço amplo onde pudesse respirar melhor e onde a rua desembocava.
Entrou finalmente na grande Alameda, outrora um areal de relva verde, cuidada e fresca e hoje uma terra rala com resquícios de erva onde uma pequena multidão fazia acampamento ocasional: seguiu pela álea lateral onde alguns turistas jovens e pálidos apanhavam sol, estendidos nas toalhas em fato de banho.
Uma mulher desconhecida interpelou-o ao vê-lo a observá-los:
- Assim poupam uns tostões no transporte e fazem de conta que a praia é aqui, ao pé da fonte.
Ah sim, a grande fonte luminosa com cavalos de pedra e uma espécie de deuses marinhos no meio de um oceano de água que era jorrado das alturas.
Um casal imberbe de estudantes em trajos académicos espojava-se na erva,
descalços, ela com os collants manchados de branco.
O pensamento do caminhante voava para longe, tentando passar despercebido, quase em passo de corrida curto, consciente de que a sua saúde mental não andava famosa e que tudo aquilo lhe provocava, talvez exageradamente, uma certa náusea.
Avistou chusmas de elegantes blacks na sua luta pela sobrevivência e nos seus esquemas ao telemóvel e grupos de homens idosos e alquebrados a jogar o pouco dinheiro que não tinham à volta de mesas, dispostas à volta de quiosques improvisados para arrancar uns trocos aos transeuntes de passagem.
Era quase hora dos restaurantes abrirem e as empregadas novas aproveitavam os últimos momentos antes do trabalho para virem fumar à porta, já porém muito enfadadas e com um aspecto gasto.
Ele continuou a impor a si próprio alheamento, distanciação e evasão com a maior urgência. Memórias doces de imagens esfumadas e desaparecidas com o tempo.Quando a Alameda era quase deserta e as jovens mães vinham passear os seus filhos nos carrinhos de bébé e as pessoas cumprimentavam-se com um sóbrio acenar de cabeça.Os ruídos eram outros, Pregões,talvez uma gaita de foles do amolador.O ar, a atmosfera era diversa,definitivamente mais leve.
Nos grandes écrans de publicidade anunciava-se o ataque iraniano de drones a Telavive, as ameaças de retaliações e o perigo de uma guerra catastrófica e de grandes proporções com o mundo a ser destruído e a soçobrar.
Nos outdoors colocados em pontos estratégicos, os partidos descompunham-se em mensagens sórdidas uns aos outros, eliminando com cruzes assassinas os líderes políticos uns dos outros, e o antigo cinema ainda com a traça do estado novo virara templo de seita religiosa, o café uma sombra do que fora, pejado de um corpo influente de empregados da América do Sul com feições indias e a falar um português mal apalavrado.
Negócios mal amanhados de trotinetes e bicicletas quase atropelavam os peões que tentavam passar por entre as obras que a Junta tinha em permanência e a prazo eterno, tornando a avenida que atravessava a Alameda em direcção ao velho centro hospitalar da cidade, um beco afunilado e perigoso onde os automóveis andavam a passo de caracol e em fila indiana, escapando às sirenes das ambulâncias que queriam passar em aflição, transportando doentes em estado critico.
Ele escapuliu-se, correu, ofegante, virando na perpendicular, subitamente maldisposto em direcção a casa como se tivesse a fugir de uma manifestação descontrolada e entrou em casa, lívido, como se acabasse de ver um fantasma ou mil.
- Ai Sr Rui vem da caminhada? – perguntou a serviçal, outra alma tosca e terra a terra.
- Sim, sim, Adélia,por favor , preciso de uma bebida forte, de um whisky, traga-me a garrafa que está na cozinha, se faz favor.Não, espere, espere.Um momento.Primeiro tenho que ir à casa de banho. Vomitar.