Era noite de Natal e a matriarca da família seguia à risca a tradição da árvore genealógica...
Fontes históricas da família, guardadas em caixas de mosaico tipo vitral, traziam à tona um passado que bordado de confetes, fazia brilhar os olhos saltitantes e curiosos dos pequeninos que, ansiosos, aguardavam o momento mais sublime da noite: a troca de presentes.
Era a primeira vez que Tadeu vinha da Espanha com sua família se juntar aos irmãos, depois do último ano. Vera, sua esposa, não via com bons olhos a família de Lucinda: "parece que estão petrificados num porta retrato", dizia ela, como se vivessem numa realidade paralela.
A avó seguia seu ritmo lento de alguém que carrega nas costas 94 anos de sabedoria. Viu guerra, inflação subindo, mortes. Nada a abalava.
Com os álbuns de fotos em mãos, nominava um a um, desde as primeiras gerações revelando a força e a coragem que lhe eram tão peculiares. Todos respeitavam o ritual assistido desde a primeira infância.
A noite transcorria de forma doce e leve. A fartura estampava as fotos nas redes sociais: frutas, carnes, lentilhas e doces decorados com o tema natalino. Entre as bebibas uma antiga tradição da família, cuja receita guardada estava, sob 7 chaves. Há muitos anos não ousavam preparar aquela bebida por causa do mau agouro que a acompanhava: se tomada em excesso provocava sinceridades absurdas capazes de transformar amor em ódio. O que ocorreu com Vera, no último natal que esteve na cidade.
Não satisfeita em assistir a família de "comercial de margarina", Vera, pela segunda vez, passou a usar a bebida como forma de alegrar-se, apesar de não se sentir confortável naquele ninho.
Copo vai, copo vem. E a coragem veste armadura para a guerra. Lucinda, como de costume, sentada junto aos seus próxima a árvore, permanecia tecendo elogios aos que chamava geracões de fibra de vidro.
Surpreendentemente, do alto de seus míseros 1m e 60, surge Vera, desapontada, mas imperativa:
- Vó Lucinda, adora criar roteiros para os seus personagens favoritos. - espetou a nora.
Vó Lucinda porém, ignorou a provocacão e continuou a mostrar imagens dos descendentes. Até que apontou Tadeu, vestido de Super Homem, numa das dezenas de fotos de carnavais. Segurando a foto, em mãos, aproveitava para falar das qualidades de Tadeu e de sua autencidade. Não fosse, é claro, a espuma no canto da boca de Vera:
- Só esqueceu da parte em que Zorro, movido por uma paixão desenfreada, quase, por bem pouco, apaga a foto da família. Por que tamanha hipocrisia, Lucinda. Todo mundo sabe das "puladas de cerca" dele.
Lucinda, calma, olha para as crianças com compaixão e absorve a decepção que lhe toma de modo avassalador. Do mesmo modo, olha pra Vera que rindo, faz um movimento circular com o copo de bebida, como quem misturasse o conteúdo. E solta:
- Vera, razões em série você tem para injetar o ódio que a domina desde que Tadeu, se aventurou trocando o certo pelo duvidoso. Mas essa razão, que só a você apavora, não pode ser motivo de destruição das novas gerações. Não me apego aos erros cometidos pelos que me antecedem ou sucedem, a própria natureza faz o papel de corretora universal, Lei do Retorno é implacável, minha querida. O que não posso, mesmo que insista, é transferir para as gerações futuras o peso do passado. Nós militamos em lados diferentes, minha filha. Eu recupero porta-retratos quebrados e você, infelizmente, os mantém dilacerados, fazendo cama pra sua dor, de modo que ela permaneça em coma, sem reação.
O silêncio tomou conta da sala. A maioria olhava com surpresa para a cena. Do nada, Matheus, em pleno gozo de sua energia infantil, inerente a um menino de 7 anos, diz:
- É Vó, a Tia Vera é da Turma do Jacaré. Quando abre a boca, não sobra um.
Todos riram, enquanto a avó, agora abatida, juntava as fotos e as colocava na caixa.
E numa tentativa frustrada de devolver o ritmo de festa ao grupo, Lucinda pega levemente o braço de Vera e diz:
- As crianças não precisam carregar a dor daqueles que as precedem, melhor que se encham de fantasias, sejam super-heróis, deem vida, para que, não fitem em você, e, ao contrário, encham de amargura o mundo.
Vera, se quiser, ainda é tempo de ser feliz...