Borboletando (Mais Uma Sobre Insetos)

O alto valor mensal que desembolsavam pelo convênio médico não se refletia no atendimento do Pronto Socorro. Por ser uma manhã de domingo, talvez estivessem ainda mais desamparados. Dos cinco guichês disponíveis apenas um funcionário trabalhava.

João Carlos, sessenta e seis anos, passava pela triagem do ambulatório. A esposa, Suzana, dois anos mais velha, aguardava, sentada numa cadeira próxima à janela, na recepção. Trinta cadeiras, mais ou menos. Vinte por cento ocupadas; mas pernilongos não lingam para aritmética, então apenas Suzana se esforçava em escapar de uma picada enquanto cuidava para que sua bengala não caísse e a tornasse um ponto de referência no ambiente (" à esquerda, segunda porta, perto da senhora que fez aquele estardalhaço derrubando a bengala").

Balançava as pernas e seguia o inseto com os olhos, no desespero de ser "premiada" a qualquer momento, e na esperança de capturá-lo com um rápido movimento da mão direita, coisa corriqueira até outro dia mesmo. Ou seria há uns trinta anos atrás? O tempo é traiçoeiro...

Uma borboleta azul e preta entrou e tirou Suzana de seu devaneio. Confuso em meio à luz artificial, o inseto se debatia na porta de vidro que foi encapada com filme opaco. A mulher ficou assistindo, por intermináveis minutos, a angustiada tentativa do inseto em escapar dali. Todas as outras pessoas que aguardavam atendimento, mergulhadas na tela do celular, nada perceberam. Ela precisava tomar uma atitude. Não estava suportando aquilo.

A muito custo se levantou e caminhou até o largo corredor onde a borboleta travava sua luta contra a morte. Apoiou-se com a mão esquerda, trocando a bengala de lado. A velha mão direita foi convocada para a missão de resgate. Um movimento rápido, preciso e delicado. Capturá-la sem esmagá-la.

Vupt!

- Peguei! - gritou distraída, enquanto lentamente se dirigia à porta para soltar a borboleta. Fazia tempo que não experimentava uma sensação tão pura e plena de alegria propiciada por um ato seu. Dois coelhos numa só cajadada: a boa ação e o desempenho motor que a revigorava trinta anos! Todos levantaram suas cabeças, assustados pelo grito. "Velhinha escandalosa...". Poderia ler-se em suas expressões.

Exultante, voltou para as cadeiras. Escolheu outra, na esperança de se livrar do obstinado pernilongo. Ao sentar-se, PLAFT! A bengala estalou no chão. Todos voltaram a levantar suas cabeças para reprová-la novamente. Alguns até a negativavam com a cabeça.

O marido, medicado e liberado, já vinha ao seu encontro quando ela escutou o diálogo de um paciente com a única atendente:

- Desculpe, qual porta?

- A azul, no fim do corredor. Perto da cadeira daquela senhora que derrubou a bengala o senhor já vai conseguir ver.

Logo João Carlos esticava o braço para esposa, advertindo que fossem embora o mais rápido possível. A maioria ali, segundo o informaram lá dentro, estava com suspeita de dengue.

GEORGES
Enviado por GEORGES em 09/04/2024
Reeditado em 09/04/2024
Código do texto: T8038236
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