Tiquinho e o cãozinho

Vivia na rua. A mãe, em vila afastada. mas ele passava o tempo todo fora. Dormia, em qualquer lugar, na sarjeta, diziam. Porém, creio que tinha algum lugar de rotina, mesmo que num canto da estação de trem ou embaixo de alguma ponte.

O ser humano precisa de um lugar seu para dormir, com pelo menos duas paredes formando um canto. Algum lugar que sinta aconchegante. Não creio que se consiga dormir toda noite, em um banco da praça. Precisa ter ao menos duas paredes, sejam elas de tijolos, de madeira ou mesmo de emaranhado de planta. Pessoas que viajam muito, dormindo em hotéis, sempre apreciam a volta para o seu “canto”.

O apelido Tiquinho tinha algumas versões. Uma, afirmava que a razão era por pedir, sempre, um tiquinho do que outro estava comendo. Outra, que provinha como derivação do apelido do pai, Ticão, que caiu no mundo há bom tempo. A mãe divulgava isto. Pai que nunca ninguém viu. Diziam até que o pai seria um antigo vereador e em atividade na cidade, que tinha um filho, comerciante, apelidado de Tico. A mãe negava. O menino ficava furioso quando algum seu algoz, e ele tinha vários, manifestava sua versão com um gesto da mão, colocando o polegar e o indicador mostrando uma pequena dimensão, referindo-se ao tamanho de seu pênis, um tiquinho. Daí, choviam impropérios.

- Pergunta prá sua mãe. Pergunta prá sua irmã.

Parecia esperto, inteligente, mas acho que era ingênuo, manipulado por jovens de mais idade ou mesmo adultos sacanas. Vira e mexe o colocavam em enroscos. A polícia não o prendia. Contavam que era frequente levar uns cascudos quando aprontava alguma. Mas, não se emendava. A vida na rua, sempre se achando esperto, importunando garotos e meninas, mas nunca aprontava coisa séria. Quando brigava, apanhava ou saia correndo. Vivia de doações de roupas e comida.

De vez em quando era acusado de ter roubado alimento na feira semanal. Os feirantes davam o que queriam dar, mas nem sempre o que ele pedia e desejava comer. Daí...

Banho, uma ou duas vezes por semana, tomava num posto de gasolina que tinha chuveiro para os funcionários, no fim do expediente. Pegava o sabonete e toalha, limpa, com o dono.

O Tiquinho era patrimônio da cidade. Todos o aceitavam e, de certa forma o protegiam, mesmo com os problemas que causava.

Nas noites da quinta para a Sexta-Feira Santa, tradicionalmente, jovens assaltavam galinheiros, pegavam algumas penosas e levavam para bares da redondeza, previamente combinado, onde eram preparados ensopados para os ladrões e convidados. Nunca soube que houvera parte na polícia pelos prejudicados, mas apenas reclamações de boca porque sempre se sabia quem eram os transgressores. Penso que respeitavam a tradição. Os assaltantes nem sempre eram os mesmos. Os novatos eram treinados, iniciados pelos veteranos. Mas, o Tiquinho era sempre citado.

Não me relacionava com ele. Eu era um dos garotos que me ameaçava, achincalhava, dizia que ia partir para a briga. Todos nós já sabíamos, bastava dizer que chamaria a polícia e ele saia em disparada, as vezes rindo.

Certa ocasião um adolescente que visitava a cidade estava em um bar. Era muito comum valentões da cidade afrontar “estrangeiros”. Tiquinho, coitado, meteu-se a besta, provocou-o. A plateia o encorajou e ele foi para cima do rapaz. Não poderia ter imaginado que injuriara um lutador de boxe da capital. Recebeu alguns bons golpes e teve que ser encaminhado à farmácia do seu Maurinho para tratar dos ferimentos.

Depois disso, sumiu. Há dias ninguém o via.

Foi justamente quando desapareceu o cachorrinho de raça da dona Nininha. Ela, acompanhada de seu sobrinho, andaram pela pequena cidade buscando o animal, perguntando para todos, ela sempre apresentando o rapaz. Quem era o sobrinho? Justamente. O adolescente boxeador, em visita à tia.

Não demorou para surgir boatos que o Tiquinho tinha pegado o tal cachorrinho como vingança da surra que levou.

E onde estava o moleque!

Um andarilho (toda pequena cidade tinha um que ia e vinha) afirmou que o tinha visto na mata dos Antero, assando no espeto, que girava com a mão, fogueira de gravetos, um animal pequeno. Maldade insana! Uns contra o diabo do moleque e outros contra a calúnia do andarilho. Teve quem defendia o Tiquinho, o coitado estava esfomeado. Até ameaçaram o boxeador, que achou por bem voltar para sua cidade.

Este incidente agitou a localidade por uma semana e foi arrefecendo. A dona Nininha já se conformava.

O Tiquinho reapareceu. O caso reacendeu. O garoto passou a ser pressionado por vários que queriam saber sobre o paradeiro do cãozinho. Ele estava assustado. Dizia que não sabia de nada.

Embora a dona Nininha não tivesse prestado queixa, um advogado recém formado resolveu defender o garoto. Seria um bom exercício para o início de carreira. Conseguiu ser entrevistado na rádio da cidade.

- Não há provas. É inocente. É inimputável. É ingênuo. Não faz mal a uma mosca. É arrimo de família (essa não pegou).

Mas o que me chamou a atenção foi:

- Mesmo meu cliente sendo inocente, quero lembrar que não existe uma legislação que proíbe matar e se alimentar de cães e gatos.

- Ohhh! – indignados, perplexos, boquiabertos, chorosos, raivosos, irônicos, ninguém ficou indiferente. O andarilho esfregou as mãos.

- Explica melhor isto - pediu o entrevistador. A população vai te questionar forte!

- Existe diferenciação entre animais domésticos e silvestres. Para os domésticos, como já disse não há proibição, nenhuma regulamentação. Para os silvestres é necessária autorização especial e o Ministério da Agricultura é que controla e fiscaliza o abate no país.

- Nossa cultura rejeita a prática para cães e gatos, embora seja diferente em algumas civilizações, disse o entrevistador.

A entrevista terminou aí. O dono da rádio mandou suspender.

O delegado fez saber que, caso fosse acionado (ninguém prestou queixa) e uma vez confirmado que o animal serviu de alimento, o responsável poderia ser enquadrado por maus tratos. Teria que investigar. Ou seja, não se trata do ato de se alimentar, mas as condições em que foi abatido é que deve ser investigada.

As opiniões na cidade ficaram divididas. O Tiquinho dizia a todos que encontrava, lacrimoso, que era inocente.

Dona Nininha ganhou outro cãozinho de uma vizinha. Tinha pena do Tiquinho. Resolveu esquecer o assunto.

A cidade foi, aos poucos voltando ao normal.

O advogado procurou o delegado. Passaram a conversar com frequência, principalmente sobre assuntos jurídicos. Conversa muito produtiva para o jovem. O delegado era muito experiente.

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Edson Gomiero
Enviado por Edson Gomiero em 08/04/2024
Código do texto: T8037455
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