Profundos olhos azuis
Não estava nos planos de Bárbara tornar-se enfermeira. A vida, acredita ela, tem dessas coisas. Saiu de casa muito cedo, aos dezessete anos. A vida morando com os seus pais era uma eterna troca de acusações, discussões intermináveis, xingamentos dos piores tipos, copos voadores e ameaças constantes de saírem em vias de fato. O melhor era ir embora. Naquela época, sonhava em ser dentista.
Nasceu uma menina linda, herdando todos os atributos de perfeição de sua mãe, mas a adolescência foi um baque em sua vida. A dança dos hormônios em seu corpo foi transformando sua personalidade dócil e meiga em um fervilhão de desejo e revolta, entregando também a essa mulher em desenvolvimento algumas características bem peculiares da anatomia de seu pai, dentre elas uma boca de dentes espaçados e exageradamente grandes para uma face tão delicada. Passou anos em um tortuoso tratamento dentário, usando aparelhos de todos os tipos e colocações em um trabalho árduo de adequação da natureza ao bem-estar da criança.
Todo esse processo de inquietação, raiva e tortura foi amenizado por um único fator, assim pode-se dizer: os imensos olhos azuis de sua dentista. Era fascinada por aqueles olhos profundos e delineados de cílios perfeitamente alongados. Sentia-se apaixonada mesmo jamais tendo conseguido contemplar seu rosto por completo, sempre de máscara branca e com duas pequenas mechas encaracoladas de cabelo cor de mel que se balançavam enquanto ela apertava, parafusava e esticava ao máximo seus doloridos dentes.
Barbara pode então contemplar um sorriso perfeito composto por dentes alinhados e na proporção exata. Graças a isso e ao seu crush juvenil nos olhos marcantes da ortodontista, decidiu ela também ter seu próprio olhar desejado, amenizando com charme seus pobres pacientes incomodados pela imperfeição e dor.
Nessa época, Bárbara ainda atendia pelo nome de Daniel.
...
Esse texto faz parte do meu projeto de livro TEMPO QUE O TEMPO ME DEU.