Uma farsa
Viu-se nu ao espelho. Na protuberância que lhe pendia da barriga, projetou seu corpo aos demais corpos. Mirou-se mais uma vez: não era bonito, absolutamente, pensou. Na crista branca de cabelos finos e falhos, a calva era evidente. Não adiantava escondê-la, a tentativa de engano só tornaria aquilo mais vergonhoso.
— Amor, você prefere levar primeiro o Bento ou a Priscila? Se não sairmos daqui a cinco minutos, chegaremos atrasados.
— Já estou indo, disse.
Com um movimento ágil e, como que saído de um torpor mental, colocou a calça jeans e vestiu sua camisa polo, de golas. Pegou de um pente. Comparou-se outra vez. Com o sentimento de derrota gerado pela paridade, saiu.
O caminho era sempre o mesmo: passar rapidamente pela João Machado, cruzar a Maximino Figueiredo, parar em cinco ou seis semáforos, separar a briga dos filhos e, depois, cumprir sua jornada de oito horas.
Por mais contraditório que pudesse parecer, Jaguaribe era um cemitério sem ainda seus mortos. Todo o ecossistema daquele bairro consistia na mansidão, na vagareza, nos homens que, por toda a luminosa tarde, ficavam em suas cadeiras de balanço olhando o movimento dos carros, conversando com seus amigos de infância que nunca saíram, de fato, da tenra idade juvenil.
Sempre que cruzava aquele bairro tinha a sensação de que estava varando outro mundo, um mundo onde a ordem das coisas estava dispersa erroneamente.
Jaguaribe era uma eterna modorra. Digna de uma Oblomovilândia.
Em um só movimento tirou o cinto de segurança, abriu sua porta e arrodeou o automóvel para, às pressas, tirar Bento do carrinho e entregá-lo à Creche das Sesmarias. Poucos minutos depois, da mesma forma, entregou Priscila às professoras.
Alguns quilômetros depois, chegou ao seu posto, limpou rapidamente a mesa de trabalho e conectou-se para iniciar seu turno. Olhou o celular e encontrou uma mensagem da esposa. “Quando vir, passa primeiro no supermercado e depois busca os meninos, certo? Te amo!”
Pensou com um leve enfado que sua vida resumira-se a isso: um eterno tom paternal, protetor, familiar. Um eterno comprar, buscar, resolver e, no fim do dia, mais trabalho, mais cuidados, mais problemas. Nem lembrava a última vez em que se deitou à noite com Joice. Sentia que, no fim das contas, estavam caminhando rumo a uma estrada que, mesmo sabendo que ocorreria ao fim algo trágico, não era possível desviar-se da rota; havia algo contínuo, metafísico, forte o bastante para que mantivessem as mãos firmes no volante.
Acabou o turno e iniciou-se o segundo: buscou Bento, depois Priscila e, pouco antes de chegar à sua casa, lembrou-se que havia coisas para comprar; esquecera-se completamente do pedido de Joice. Não vou voltar, pensou, não vou voltar. O cansaço apoderava-se de tal forma de seu corpo flácido, grande, que era impossível sobrepor a preguiça e retornar.
Entrou no tom de esquecimento em casa e, dali, iniciou-se mais uma briga, mais uma revolta conjugal, o mesmo de sempre.
No dia seguinte, tudo outra vez. Mesmo semáforo, mesmo bairro morgado e estúpido, mesmas atribuições ao longo do dia.
Ao sair do trabalho, dessa vez, não buscou os meninos; mandou mensagem para que Joice o fizesse. Era sexta à noite — precisava beber.
O relógio batia dezenove horas quando chegou ao bar da Villa. Depois do quarto ou quinto copo surpreendeu-se que a quantidade de álcool não fora suficiente ainda para tirá-lo daquela angústia, daquela sensação de não pertencimento que volta e meia pegava-lhe pelo pescoço. Da cerveja, passou ao Gim, do Gim ao Whisky; lembrou-se da infância em Jaguaribe. Pensou nos seus amigos que ainda estavam lá, de rua a rua, sentados em suas cadeiras, grandes expectadores do mundo, sem quaisquer pretensões, sem cobiças, sem idealizações de grandes feitos, sempre a espera de que algo ou alguém lhes mostre o caminho. Ninguém irá fazê-lo, pensou, pois, ao fim e ao cabo, quem poderia? Tinha hoje a vida idealizada nas suas mais íntimas utopias, e embora se julgasse diferente dos amigos, carregava também no âmago a mesma sensação — a sensação de perda.
Com os olhos marejados e a voz embargada, pediu mais uma bebida. A garçonete de pronto a trouxe e a pôs em cima do balcão. Antes que pudesse dar-lhe as costas, manteve seus olhos fixos nos dele. Reconheceu-o naquela face protuberante, de bochechas grandes e olhos rápidos:
— É você? Quando te vi de longe, achei que era outra pessoa. Está muito mudado.
— Sim, mudei. É o efeito do casamento — disse e riu.
— Talvez o casamento tenha caído bem em você.
— Não vá me dizer que gostou do que viu?
— São suas palavras. Você quem as está dizendo.
Abriu rapidamente o celular e lá estava outra mensagem. Joice e as crianças o esperariam acordadas. Quando chegaria? Iria demorar? Resolveu não responder de imediato. Voltou à conversa.
— Cátia! — disse e de súbito assumiu um tom festivo, quase nostálgico, um tom de todo implausível ao seu temperamento — Cátia!
Ela riu e corou; talvez volvendo à mente uma lembrança que dizia respeito somente aos dois.
— Euzinha mesma! — disse e entrou no mesmo tom brincalhão.
Lembrou-se novamente da juventude; a bebida fazia com que seus sentimentos ficassem embolotados, dispersos. Crescia-lhe, além disso, uma lascívia. Enquanto conversa com Cátia, tentava de todo forma mudar a narrativa de modo a fazê-la rememorar algo antigo, prazeroso e carnal, algo que sua mente — não inconscientemente — tentava projetar para aquela noite.
Além da lascívia, crescia-lhe outra sensação, da qual abdicou há tempos: era a sensação de estar sendo desejado, de ter o corpo admirado e vislumbrado, não sendo visto como um físico de alguém apenas descuidado, mas de alguém que ainda possui beleza no descuido; nas ancas que lhe pendiam da barriga, na careca rala e branca, no engodo do casamento frustrado e insosso, atirou-se nesse projeto criado em sua própria imaginação. Era um vislumbre, modelando a realidade a seu bel-prazer. Para si, dentro de sua mente perturbada e vil, a fim de tornar-se real, caiu naquele abismo de devassidão.
Sucumbiu ao delírio.
Chegando à casa, entrou de mansinho, imaginando que, cansados da espera, estariam os filhos e sua esposa a essa hora dormindo. O relógio marcava zero horas.
Subiu as escadas, entrou primeiro no quarto de Bento e beijou-lhe as faces, depois fez o mesmo com a esposa e a filha. Dormiam bem e pareciam sonhar com algo bom. O carinho não fez com que despertassem e ele deu meia volta, desceu as escadas, destacou uma cadeira que estava dentre a mesa, e sentou-se.
Ao sentar, recostou primeiro o cotovelo direito na coxa da perna e apoiou o queixo com as mãos. Depois, fez o mesmo movimento com o braço esquerdo, mas dessa vez apoiou o rosto em ambas as mãos.
Demorou apenas alguns segundos, talvez até menos do que isso, para que Joice escutasse um choro violento e tristonho irromper do cômodo mais abaixo.