Dr. Concesso entrou esbaforido. Um bom dia seco para a secretária Ivete. Notou que as cadeiras da sala de espera ainda encontravam-se vazias.

 

— Outro bolo, Ivete? Essa semana tá osso, hein?

— É, e o pior é que nem se dão ao trabalho de desmarcar! Só tem um paciente às 11.

— Deixe ver a agenda. Nossa, é o Seu Matias. Ivete, ele mandou a tomografia de pulmão?

— Tá na sua mesa, doutor. Mandou ontem. A sobrinha deixou aqui.

 

Concesso andava pela meia idade. Já tinha visto de quase tudo na profissão. Seu Matias, porém, era um caso à parte. 85 anos de vida, lúcido, contador de causos, magro, alto, ainda esbelto. “E pensar que o homem ainda nada na represa com essa idade! Espero que o exame não tenha mostrado nenhum problema. Mas aquela tosse andava estranha.” Sentou-se ao consultório e viu o envelope grande do exame de imagem sobre a mesa. Ligou o notebook e logo abriu o pacote, olhando demoradamente para as imagens ali contidas, ao mesmo tempo em que lia e relia o laudo. Após alguns minutos deixou de lado os documentos e reclinou-se na poltrona. Soltou um breve suspiro e empalideceu. “Como darei esta notícia pro Matias? Ele vai ficar arrasado, coitado!” As têmporas já bem grisalhas denunciavam os anos de idas e vindas na árdua profissão, plena de bons momentos e também de muitos outros espinhosos, como esse de agora. Olhou para o relógio de mesa: 10:30. A mente passou a elucubrar: “Peço uma ressonância? Ou passo direto pra broncoscopia? Será que tem catarro pra exame? Vai precisar da biópsia. E nem fumante ele é, ora bolas!” Acabou adormecendo. A noite de domingo fora inglória, com a velha ciática marcando presença.

 

— Dr. Concesso, Dr. Concesso, o seu Matias já chegou...

— Oops, desculpe Ivete, cochilei!

— Eu percebi. O senhor tá parecendo meio cansado, mesmo. Vai lá e lava o rosto antes...

— Bom dia, doutor. Uai, o senhor parece meio derrubado! O que houve?

— Não dormi bem. A ciática atacou.

— Já lhe disse, Dr. Concesso. Esse seu estilo de vida ainda te pega. O dia todo sentado. Tem que caminhar, amigo!

— Obrigado. Sente-se aí. Precisamos conversar.

— Gosto de conversar, doutor. Tenho muito tempo. O senhor é que não tem, né? Nem pra cuidar de si mesmo...

— Bom, Seu Matias, sendo franco com o senhor...

— Já sei, já sei, doutor. É aquela manchinha de novo, né?

— Não é uma manchinha, Seu Matias. É um nódulo e precisa ser investigado. Ainda mais com essa tosse...

— Relaxa, doutor. Aquele dia eu engasguei com farinha... Sabe? Sei como cuidar dessa mancha. Ela vai e volta. Mas aí eu nado bastante e a danada some.

— Não, não. O senhor não tá levando a sério. Tem que se cuidar...

— Que nem o senhor, né?

— Hum, hum. Vou pedir uma ressonância pra estudar melhor, tá certo?

— Óia, doutor. Gosto do senhor e vou fazer, mas daqui uns 15 dias, tá certo? Aí a coisa some de novo.

— Combinado, Seu Matias. Mas não passe disso, ok? Agora venha. Sente-se aqui na maca. Respire fundo. Diga 33...

 

Na parede lateral do consultório, o reflexo envidraçado da estante revelava um semblante taciturno do examinador, contrastando com a expressão de leveza do idoso de aparência saudável. 

 

                               ***

 

Três semanas se passaram...

 

— Dr. Concesso, a clínica de imagem enviou as fotos e o laudo do Sr. Matias. Quer que eu imprima?

— Sim, Ivete. Mas, pra falar a verdade, estava mesmo é adiando. Seja o que Deus quiser.

 

O cuidadoso profissional fizera questão que seu paciente se submetesse ao exame na clínica mais renomada da região, distante mais ou menos cem quilômetros da localidade, em aparelho de ressonância nuclear magnética de última geração, 3 Tesla, campo aberto, de boa amplitude e maior velocidade de inclinação, além de baixa relação sinal-ruído. Ao analisar o resultado, deixou-se quase derrubar sobre a poltrona.

 

— Não acredito! Isso é impossível... em tão pouco tempo! Ivete, me faça uma favor: ligue para o Seu Matias. Que dia ele marcou o retorno?

— Ele não marcou. Deixou um recado aqui na secretária eletrônica. Achei estranho... o senhor quer ouvir?

— Olá doutor. Resolvi visitar minha filha aqui no interior de São Paulo. Está melhor das dores? Pois é, não lhe disse? O senhor estava preocupado atoa. Este problema já me acompanha há umas duas décadas. Vários colegas seus já ficaram intrigados antes. Mas, como sempre, estavam errados, como o senhor mesmo. Eu me cuido, durmo cedo, como pouco, faço exercícios, não fumo e não bebo. E, o principal: tenho fé! Acredito na vida, na saúde, nas vacinas, na ciência. Em Deus. Penso sempre positivo. E sou recompensado. Ainda pretendo viver bastante. Fique em paz, Dr. Concesso. Ah, e cuide de sua coluna, hein? Abraço...

— O que digo pra ele sobre o exame, doutor?

— Eh... nem eu acredito, Ivete. Diga que está normal...

 

                            ***

 

Dez anos depois...

 

— Uma mensagem para o senhor. Chegou há pouco: “Dr. Concesso, aqui é Joana, filha do Matias. Sinto dizer, mas meu pai partiu esta semana, com 95 anos. Morreu dormindo, após ter nadado um pouquinho à tarde, acredita? Gostava muito do senhor, quero que saiba. Agradeço o carinho que sempre dispensou a ele. Fique com Deus!”

 

Aquele final de tarde de sexta havia sido cansativo. Consultório movimentado. Semana findando. Uma pequena lágrima furtiva insinuou-se no olhar distante do médico, enquanto trocava a roupa branca de trabalho pela esportiva, do pilates. O reflexo na estante de vidro revelava uma expressão enigmática. Um misto de tristeza e contemplação...

                                           

           

                        

Obs: imagem aleatória, retirada do Pixabay.