Aconteceu Há Uns Trinta Anos Atrás
A história que eu trago hoje, felizmente aconteceu há quase quarenta anos atrás. Digo isto porque, de outra forma, nosso protagonista não estaria perdido, tantas são as ferramentas que temos nos aparelhos celulares que nos cercam hoje em dia.
Guilherme pegou o ônibus errado. Enfrentara um turno complicado no novo trabalho, das 22 às 6 horas. Estava meio grogue de sono e isso contribuiu para a confusão. É que ele estivera desempregado por cinco longos meses e fora obrigado a pegar a primeira vaga de emprego que lhe ofereceram. Emprego ruim, horário pior. Enfim, depois de um forte solavanco do veículo, ele acordou e resolveu descer imediatamente. Tudo naquelas paragens era estranho para ele. Nunca estivera ali. Aliás, pessoalmente, acho incrível que haja bairros que permaneçam completamente inexplorados para mim até hoje, por mais que eu já tenha apagado velas de aniversário. Esse é, inclusive, o caso do Tremembé, onde se encontrava Guilherme.
Depois de obter informações, dirigiu-se a outro ponto, no outro lado da rua. Lá estava sentado um senhor, resolvendo palavras cruzadas. Sua expressão era fechada e ele parecia bastante contrariado, tantas eram as negativas que indicava com um leve meneio da cabeça. Fora isso, chamou a atenção de Guilherme a tamanha semelhança do homem com o seu falecido pai. Tinham a mesma compleição física, a mesma cor da pele, o mesmo tipo de cabelo... E quando a coisa é para encasquetar, até mesmo a maneira de se vestir e os trejeitos eram muito parecidos...
Aquilo mexeu fortemente com o moço. Não contava ainda dez anos da partida do velho. E se isso parece muito tempo pra você, querido ouvinte, para ele era como se fossem dez meses. Não, ele não se conformava com a forma abrupta como o pai os deixou. Um terrível acidente de carro. Uma brutal ruptura que - obviamente - não deu a eles a oportunidade de se despedirem um do outro. Por vezes, o senhor levantava a cabeça e fazia "que não" olhando pro final da rua. Numa dessas vezes Guilherme tomou coragem:
- O senhor se parece muito com o meu pai...
O homem o mediu com certa desconfiança. Mantinha-se sério e com uma expressão distante. Mas isso não intimidou o rapaz, que emocionalmente se sentia na presença do pai. Encararam-se por alguns segundos, quando um discreto marejar dos olhos de Guilherme amoleceu o coração do velho.
- É mesmo? - ele disse, finalmente.
- Sim, muito! - confirmou o moço com um sorriso emocionado, que soava quase como um agradecimento.
- E ele... - Adiou o velho a pergunta da qual já sabia a resposta.
- Sim. É falecido. Infelizmente...
- Você está esperando o 1771 também?
- Segundo me informaram, sim! - confirmou Guilherme.
- Se não atrasar, ainda demora uns quinze minutos... Dá tempo de [8]tomarmos um café aqui do lado. - convidou, apontando a porta da padaria.
- Claro, vamos lá, por que não?
Foram. E num segundo - como também só parecia possível trinta anos atrás - já trocavam amenidades, histórias e lembranças. Atropelavam-se, falando de política, da economia, de futebol (torciam para o mesmo time, vejam só!) de forma que ônibus passou e não deram a menor importância, esticando a conversa indefinidamente.
- Mas você precisa resolver essa coisa com seu pai, garoto. Já faz muito tempo... Não te faz bem. Procure assimilar a perda... Mesmo porque tenho convicções que me levam a crer que esse tipo de separação é temporária... - disse o senhor Altamiro, agora devidamente apresentado.
- É muito difícil... Há dias em que estou melhor, mais conformado... Mas há também aqueles em que a saudade me assalta. É como num filme, sabe? Mamãe na lida com a casa... A roupa, a louça, as desavenças dos filhos para botar panos quentes... Imagine o senhor... Na década de 1980 morávamos numa cidade do interior de São Paulo. Apenas papai trabalhava. A rua, de terra, era como uma extensão do quintal, e na predominância das famílias numerosas não faltava aquele bando de crianças a pular corda, jogar futebol, bola de gude ou pega-pega. Com tanto excesso, castigos não eram raros. E de vez em quando até um cinto aparecia. Nessas ocasiões éramos proibidos de sair à rua. Então aparecia um filho de Deus, com uma bola não se sabe de onde, e imediatamente o muro se transformava numa "rede de vôlei". LIVRES CONTRA PRESOS, como chamávamos. E aí, bem mais tarde, após uma pausa para o almoço, nos reuníamos no portão, onde os mais velhos tentavam nos assustar com histórias de terror. Mesmo tremendo de medo, eu não arredava o pé dali. Adorava aquilo. Era uma vida muito simples, de muitas restrições, como o senhor deve imaginar, mas havia muito amor em casa. Ao nos recolhermos, era comum que papai ou mamãe orassem conosco na cama. É quando me lembro desses momentos felizes que a saudade me aperta o peito. E papai tem um papel muito importante nessa história.
Alguns momentos de silêncio, e Guilherme percebeu o seu Altamiro bastante emocionado. Agora eram os olhos do homem que estavam tomados por lágrimas.
- Desculpe... Não era essa a minha intenção. O senhor...
- Ah... não tem problema... Não tem problema...
- Mas então, o que o incomodava tanto lá no ponto? - quis saber o rapaz, tentando claramente mudar de assunto.
- Lá no ponto?
- Sim, o senhor parecia contrariado... Com as palavras cruzadas...
- Oh, sim! Verdade. Essa porcaria... Aqui... (Abrindo as páginas) - Diz-se do leite de qualidade inferior: TIPÓC. Nunca ouvi falar em leite TIPÓC... Vou mandar uma carta reclamando. Trata-se de um erro deles! TIPÓC! Onde já se viu?
- Que estranho... Posso dar uma olhadinha?
- Sim, aqui! TIPÓC, TIPÔC, sei lá...
O velho estendeu a revistinha de passatempo para Guilherme. Ele ficou olhando por um momento. Lentamente seus lábios foram se levantando num sorriso tímido.
- O que foi? - quis saber o seu Altamiro.
- Tipo C! É Tipo C! Leite de qualidade inferior...
O senhor deu um leve murro na testa:
- Tipo C! Mas que cabeça a minha...
E ficou repetindo isso, enquanto eram tomados por gargalhadas que se emendavam.