O deus esquecido
Certo dia, no aniversário em que um deus oriental que tinha se encarnado no século XX, o próprio decidiu ir pessoalmente à sua festa. Sabia, porém, que se fosse com a aparência de antes logo o reconheceriam e o colocariam no melhor lugar no templo, lhe ofereceriam os melhores presentes e iguarias, lhe fariam todas as honras, chamariam a imprensa para confirmar que os fiéis sempre tiveram razão quando diziam que ele era deus, essas coisas que humanos gostam de fazer como quem consideram celebridade.
Ele pensou e decidiu que iria à festa em um dos templos dedicados a ele, mas usaria um disfarce. Um morador de rua? Um animal? Um bandido? Um homossexual?
No meio da tarde chega ao templo. Todo mundo estava ocupado preparando a festa do aniversariante. A decoração impecável, as músicas decoradas, os ritos ensaiados, falatório, risos... todo mundo feliz na preparação da festa!
Ele chegou à recepção e aguardou que alguém viesse atendê-la. Sim, ele decidiu usar a aparência de uma mulher: negra, simples, cara pouco inteligente, roupa comprada em atacadão...
Um dos ministros, por sinal uma ministra, passou, fingiu que não viu e foi para sua sala. Pelo reflexo do vidro o deus feito mulher viu a ministra às gargalhadas com alguém ao telefone, certamente isso fazia parte da organização da festa. Por deus passou um homem, indo buscar qualquer coisa que faltava e lhe desejou boa tarde. Apressado, não perguntou se ela esperava alguém ou buscava algo. O tempo foi passando e com os olhos fitos na faixa dourada escrito "Bem vindo" (sem hífen) esse deus percebeu que não seria notado. Ou notada. Uma tristeza infinita tomou conta dela. Pensou em entrar e dizer: "Gente, sou eu, vim pra minha festa!" Ou andar no comércio anunciando-se a fim de ser reconhecida. Mas percebeu que não lhe dariam crédito! Chamá-la-iam louca e talvez a expulsassem em nome do deus que aguardavam. Decidiu, então, ir embora. Para onde? Não sabia. A tarde vinha caindo, chovia e um vento frio recomendava que buscasse agasalhar-se.
No portão encontrou com a diretora do local. Ao vê-la a coordenadora perguntou se estava chorando. Ela deu boa tarde, disse sim, abriu o portão para a coordenadora entrar e se foi. Ainda ouviu um "Ei, vem cá." Mas seu coração estava magoado demais. Esvaziada da condição divina sentia dor e precisava de uma oração, de um momento de atenção. Mas prosseguiu e foi embora. A coordenadora não insistiu e deus feito mulher partiu.
Foi ao shopping. Aí sim, viu movimento para sua festa! Mas era como se fosse invisível, ninguém a notava na multidão de consumidores ávidos. Sentou-se numa cafeteria, pediu um café, ouviu pessoas combinando os últimos detalhes da festa. Pagou e se foi. Agora todos estão lá: prestando-lhe culto, invocando sua presença sem saber que na verdade não a acolheram quando chegou à comemoração. Voltou pra casa e se perguntou em que parte da evangelização ou da vida doada tinha errado para que seus seguidores não acolhessem aquela que chegou sem ser convidada. A noite caiu e todo mundo, sem se importar e reconhecer sua presença no meio da preparação da festa, festejou seu aniversário, cantando, celebrando e trocando presentes em sua honra. 23/12/2020