Tarja preta
Ele há muito tempo deixou de ser aquele príncipe sonhado do início. Aquele que prometia paz, leveza, tranquilidade, amor, serenidade e até mesmo felicidade.
Você foi feliz com ele. Sim, você concorda que foi.
Mas alguns anos foram passando e você começou a sentir que a lua de mel havia terminado porque começou a sentir um desconforto aqui, outro ali, a memória falhava, a concentração não era mais tão boa, mas deixava pra lá porque, afinal, nada é perfeito.
Você percebeu em certo momento que ele era esquisito, e fazia você se sentir esquisita também. Mas continuou acreditando que isso “fazia parte da vida.”
Você foi percebendo que dependia cada vez mais da presença dele. Ficar sem ele causava mal estar, palpitações e as reações iam ficando mais forte, mais e mais até que ele voltasse!!! Você chorava, mas, achava que tudo isso fazia parte da aliança que um dia estabeleceu com ele.
E ele foi percebendo que você cada vez mais dependia dele e o queria para si. Aí parecia que fazia de propósito: começou a impor condições e até medir o tempo que podia ficar com você.
A sua dependência dele chegou a tal ponto que você até pensou em morrer. Mas quando ele vinha, você se sentia forte de novo e quase dormia em paz. Quantas vezes sem ele em casa, você saiu vagando pela noite tentando encontrá-lo, trazê-lo pra casa, para que ficasse com você e assim você se sentisse segura. Foram muitas noites assim. E dias também.
E a relação tornou-se cada vez mais abusiva! Ele exigia cada vez mais de você e nos poucos momentos de lucidez você percebia que ele finalmente a dominara. Ele te explorava de todas as formas e maneiras possíveis. Você se sentia trancada num mundo reduzido e ele insistia que sozinha você não iria muito longe, aliás, não iria a lugar nenhum. Você era completamente dependente dele e jamais poderia escapar!
Você se desesperou, mas ele nunca demonstrou o mínimo de sensibilidade nem quis ajudá-la. As pessoas que conheciam sua situação diziam que você não poderia deixá-lo de vez, porque muitos anos se passaram, vocês tinham uma história e esta não se apagaria se você simplesmente se você o abandonasse.
Num dia de desespero total ele a deixou sozinha. Você chorou, gritou, quebrou coisas, mas reuniu toda a sua coragem, abriu a porta e descobriu que lá fora havia um mundo. Sim, o mundo ainda existia e você quase não lembrava mais. Esse mundo funcionava independente da sua dor, da sua dependência, do seu desespero.
Então você viu que poderia dar alguns passos fora de casa. Você viu pessoas, crianças, pássaros, cidades. Você viu o céu azul e até percebeu que o sol ainda brilhava sobre a terra.
Você deixou seus pés tocarem a areia, a grama, você quis banhar-se no mar, quis correr entre as flores e sentir o perfume delas. Dizem alguns que você até dançou na rua e olhava tudo com a curiosidade de uma criança que está descobrindo o mundo. Você finalmente se sentia uma mulher liberta. Sim, agora você era livre! Ele não estava mais ali para impor sua vontade nem definir como você se sentiria.
E você passou o dia assim, se sentindo meio boba de tão feliz! E jurou que a partir de agora queria viver esta vida que estava à sua frente, sem dependência, sem ele por perto.
As horas foram passando, a tarde foi caindo e você sentiu seu coração disparar. Percebeu que estava trêmula, sentiu muito medo e ficou confusa sobre como agir. Sua vista escureceu, sentiu-se fraca e já não podia caminhar. Mas havia tanta gente abandonada nas ruas que você era mais uma e ninguém deu atenção se você estava bem ou morrendo. Ninguém percebeu sua presença pedindo socorro. E mesmo que eles ouvissem, estavam apressados demais para ajudar mais uma pedinte!
Em determinado momento você percebeu que se não o encontrasse naquele instante você de fato morreria: a dependência dele era total, você estava numa crise de pânico!
Desesperada você reuniu suas forças e foi se arrastando para a sua casa, ou a casa onde vivia há anos com ele.
Você chegou, empurrou a porta e lá estava ele sentado, rindo de você porque sabia que sem ele você não iria muito longe como de fato você não foi.
Tomada de pavor você quis abraçá-lo e no abraço esquecer todo o pavor que sentiu e ter uma falsa sensação de felicidade.
Ele, com cara de vencedor satisfeito e triunfante, apenas perguntou: “você achou mesmo que conseguiria viver longe de mim, a sua tarja preta? E deu uma gargalhada...