A Pinheiro foi templo
Luzia andou vivendo, lendo livros, escrevendo e desenhando; e depois de muito andar descobriu que aquela rua era única. Não havia o que discutir. O que havia eram grandes lembranças que não se apagaram, que a tornaram um templo de recordações. E ela considerava um luxo poder relembrar a sua rua, para ela a rua mais linda e interessante da sua cidade. De água, luz, calçadas e paralelepídos ela era feita, também de uma vista linda de morros verdejantes, como se o mundo se descortinasse a partir dalí. O seu grande mistério sempre foi a simplicidade. A sua simplicidade, a simplicidade das calçadas e, principalmente das pessoas que nela habitavam.
A Senador Pinheiro Machado, vulgo “a Pinheiro”, tinha algumas peculiaridades: era próxima do Centro Histórico, do Clube Recreativo Patrulhense e do Hospital. Abrigava a Fonte Imperial, um dos pontos turísticos de Santo Antônio da Patrulha, conhecida por promover casamentos de patrulhenses com pessoas que nela bebiam a sua água com devoção. Ainda abrigava algumas edificações muito antigas e, ao mesmo tempo, abria-se para o novo de forma muito natural.
Na Pinheiro Luzia viveu os mais lindos anos da sua vida. Nela correu, brincou, inventou e foi extremamente feliz. Na rua aprendeu a ser filha, irmã e amiga. Nela começou a namorar e deu o seu primeiro tímido beijo, jamais esquecido. Nela jogou vôlei nas tardes quentes de verão, sem se importar com o resultado, já que a rua era uma lomba. Aprendeu, sobretudo, que vizinhos podem ser mais próximos do que parentes e que a vida pode ser simples e muito interessante ao mesmo tempo.
Sempre chamou a Pinheiro de “a sua rua”, como se fosse de sua propriedade. Seus amigos continuavam os mesmos, as lembranças não se apagaram. A rua recheada de meninas, que eram a maioria, ainda soava aos seus ouvidos. Os meninos, poucos, nunca tiveram voz ativa. Nos tempos da brilhantina quem brilhava mesmo era o sexo feminino. O cheirinho do pão caseiro e o ronco do carro do seu pai também se eternizaram nas suas melhores lembranças.
Na Pinheiro era perceptível a levíssima embriaguez que elas, as amigas, ao todo eram mais de dez, tinham ao andarem juntas, quase em um bando. Andavam pela rua e pelas outras ruas falando e rindo. Tinham sede de viver e, como a sede sempre foi de graça, nada era poupado. Viviam os dias inteiros de forma intensa e realizavam muito com a sua imaginação, já que na sua época muito poucos brinquedos tinham.
Luzia por anos buscou a menina sonhadora que não tinha vergonha de abraçar um amigo, que não estava nem aí para o que pensavam dela e das suas brincadeiras inventadas, que se reunia diariamente com as suas amigas, independentemente do tamanho da casa ou da roupa que vestiam.
Buscou tanto essa menina sem encontrá-la que passou a entender que não havia mais urgência no seu resgate, porque ela estava alí, dentro do seu coração, pulsando de lembranças e deixando os seus dias sempre mais azuis quando lembrada.
A menina sonhadora e a Pinheiro misturaram-se para sempre, como uma simbiose.
23/02/2024