TERRÍVEL SILÊNCIO.
Madrugada de quinta-feira.
A chuva durou a noite inteira parando somente no final da madrugada. O clima estava ótimo, fresco, perfeito, do jeito que Daniela gostava. O calor insuportável que assolava a metrópole Sorocaba se dissipou. As semanas anteriores foram abafadas, quentes, quase infernal, muitos profissionais que trabalham no tempo tiveram problemas com a onda de calor, principalmente os coletores, varredores de rua, vendedores ambulantes, construção civil, até mesmo para aqueles que trabalham em fábrica, como Daniela, enfim, muitos foram parar no hospital devido ao calor intenso e desidratação.
Daniela acordou indisposta, o corpo dolorido, cansaço ainda pesado em cada músculo de seu corpo. Ela trabalhava em uma metalúrgica no centro da cidade, tinha que acordar cedo para pegar o ônibus. Aquela era uma semana importante para ela, completaria quinze anos de empresa e no mesmo dia o aniversário. Como de costume, levantou-se aos poucos, ficou por um tempo sentada na cama, olhando para o nada, lembranças de um sonho ruim. Daniela experimentava um misto de sentimentos, mistura de medo, euforia, angústia, êxtase, abandono, eram tantas coisas ao mesmo tempo que ela não estava conseguindo gerenciar todo o caos interior. Levantou-se rapidamente, pegou a toalha e foi direto para o banheiro. Não era seu costume banhar-se pela manhã, talvez o banho ajudasse a tirar o peso do cansaço em seu corpo. No banheiro despiu-se lentamente, pegou um dos espelhos, olhou o reflexo de seu corpo nu, prestes a completar quarenta, estava melhor que muitas meninas com a qual trabalhava. Os seios fartos, a bunda redonda, empinada, pernas torneadas, fortes, era uma mulher bonita, chamava a atenção, embora ela não se importasse nem um pouco com essas coisas.
Ligou o chuveiro, água quente percorrendo o seu corpo, a espuma do shampoo, o sabonete aromático.
Lembranças.
A juventude, moça de beleza exuberante, inteligente, bagunceira. Ela não era das mais comportadas, filha única, os pais não ligavam muito para o que ela fazia ou deixava de fazer. Tudo era por sua conta, do seu jeito.
A espuma do shampoo ganha volume, espalhando-se no corpo nu.
Novas lembranças.
O primeiro e único buquê de rosas que ganhou, era de um rapaz que estudava na classe ao lado, na ocasião, foram ao cinema. Ele doido para beijá-la, ela queria apenas se divertir, pois era o aniversário dela. Não rolou nada, havia uma ponta de arrependimento em seu coração por não ter permitido acontecer nada, os pensamentos viajavam longe. O rapaz era louco por ela, mesmo depois de tantos anos vez e outra mandava mensagens. Daniela respondia por educação, não queria muito papo, casada, não achava certo. No entanto, nos últimos meses, devido a tantos acontecimentos, ao distanciamento dela com o esposo, com toda carga de sentimentos, aliás, os pensamentos transitavam por estradas estranhas, considerando absurdos, pensando em coisas que não deveria pensar.
Terminou o banho, secou-se, trocou de roupa. O esposo continuava dormindo, ele trabalhava no turno da tarde na mesma empresa que ele. Os dois só tinham contado na hora de dormir, duas ou três palavras, às vezes, rolava alguma coisa, devido ao cansaço, nos últimos tempos não rolava nada além de um beijo e um boa noite. Esse distanciamento causado pelo horário dos dois incomodava a ambos, mesmo Daniela implorando para o chefe uma mudança no horário, ela nunca acontecia. Daniela estava cansada, não só fisicamente, psicologicamente ainda mais.
Enquanto Daniela terminava de se arrumar, ficou por alguns segundos observando o esposo, que continuava dormindo.
Pegou a bolsa, chaves, crachá, saiu.
A rua estava sem nenhum movimento, o dia veio abraçando a noite, o primeiro lampejo de claridade evidenciando o raiar de uma quinta-feira indisposta. O céu ainda estava pesado, a chuva que havia caído durante a noite deixou o clima gostoso, fresco, quase frio, perfeito para Daniela.
A passos curtos ela ganhou a rua, virou a esquina com a Madureira Cezar, logo estava na avenida, no ponto, que ficava próximo, figuravam as mesmas pessoas de todas as manhãs. Uma senhora, um moço alto, outro senhor. Geralmente Daniela não conversava com ninguém, apenas respondia quando alguém perguntava qualquer coisa. Ela ficou em um canto mais afastado observando quem chegava, aos poucos, um e outro foram surgindo, todos igualmente silenciosos, olhos grudados nas telas dos celulares, alguns com fones de ouvidos. Na avenida o movimento começava a se intensificar, carros, motos, vários ônibus de empresas. A cidade despertava, estica os seus longos braços trazendo para si a correria de todos os dias. A megalópole filha da Paulicéia desvairada trilhando o mesmo caminho.
O ônibus apontou, linha Laranjeiras sentido centro.
A moça de uniforme de mercado é a primeira a subir, depois outra com uniforme diferente, Daniela tenta ler o nome da mulher no crachá, não conseguiu, sabe apenas que ela trabalha em uma padaria que fica no centro da cidade.
O ônibus é articulado, o que é um alívio, a possibilidade de ir de pé é pouca. Daniela entra, procura uma poltrona qualquer, o lugar ao lado está vago. Ela tira o celular da bolsa, começa arrastar o dedo para cima e para baixo visualizando as últimas notícias. Não há nada de novo, as mesmas porcarias de sempre. Em uma das matérias se lê: "Supremo está a um voto de decidir pela descriminalização do porte da maconha". Outras tantas notícias sobre a política do país, o que não lhe interessa. No cenário mundial as mesmas coisas de sempre. Guerras, mortes, acusações. Nas redes sociais, fofocas, besteiras, as mesmices de sempre. Enquanto o seu dedo passeia ligeiro pela tela, ela percebe a fragrância agradável de perfume, olha para o lado, um senhor sentou-se ao seu lado, de boa aparência, olhos claros, cinquenta talvez. Parece interessado no que Daniela via no celular, olhando diversas vezes para ela. "Se interessou por mim ou no que estou vendo", ela pensa. "É bonitão, forte, cheiroso, que pedaço de pecado", continua em seus pensamentos e devaneios. Ela evita conversar, antes de sucumbir à conversa, antes de se deixar levar pelo momento, levanta-se, pede licença, desce do ônibus dois pontos antes do costumeiro.
O dia já estava claro, nuvens afogueadas no horizonte Sorocabano, o céu parecia indeciso entre o cinza de nuvens pesadas e alguns segundos de céu claro que logo se dissipou.
Pessoas apressadas pelas calçadas, trabalhadores, alunos. Cada um buscando o seu destino, Daniela é uma na multidão, o coração ainda apertado, desejo de voltar para casa, para a cama. Embora acostumada ao dia a dia da empresa, os mesmos afazeres, havia alguma coisa não agradável na monotonia de sempre, alguma coisa que ela não atinava a respeito.
O movimento era intenso na portaria da fábrica.
Homens e mulheres, trabalhadores igualmente apressados em chegar ao seu posto, a operação torturante da máquina, a produção que nunca para. Daniela era apenas um número na multidão operária, quinze anos na empresa, no mesmo setor e função, nenhum progresso significativo. Ela conhecia a máquina que operava como se fosse um filho, sabia quando estava para ter um defeito, brigava na maioria das vezes com o pessoal da manutenção quando não atendida de pronto o chamado, quando vinham, sempre fazendo as coisas apressadamente, de forma relaxada, estava cansada de tudo aquilo. O celular marcava doze minutos para a seis, era cedo ainda para entrar, ficou próximo a portaria, sentou-se em um canto qualquer de solidão, lugar costumeiro de todas as manhãs, de um ponto estratégico onde era possível observar todos que saíam e entravam. Aquele era um costume estranho, de ficar estudando o comportamento das pessoas que passavam, estudando meticulosamente cada detalhe, o jeito de andar, de falar, o comportamento, conhecia quase todos, principalmente os novos de empresa.
O pessoal da produção e turno eram sempre os primeiros a entrarem, esses, tão mais apressados, não tinham tempo para um aceno, um oi, uma conversa descontraída. Depois eram o pessoal do administrativo, diferente dos primeiros, esse grupo não tinha o mínimo de pressa, contava os passos, contavam casos, paravam no meio do caminho para conversarem. O terceiro grupo, em menor número, era dos engenheiros e gestores. Daniela os odiava, achava-os arrogantes, acima dos demais, superiores a todos. Essa era a visão que Daniela projetava das pessoas que passam, as dividindo em grupos.
O movimento era menor quando o relógio apontou seis horas e vinte minutos.
Daniela levantou-se, pegou o resto de coragem que havia sobrado, desenhou um discreto e forçado sorriso e entrou. Passou o crachá, uma sensação de angústia e medo, raiva e êxtase, tudo em um pingo de nada misturado na existência de sua alma.
Trabalhadores com semblantes desanimados, prontos para mais um dia de jornada. Daniela caminha sem pressa, contando os passos, quando repentinamente, mãos delicadas tocam o seu ombro, ela, distraída, se assustou.
— Calma mulher! Sou eu. Disse a colega.
— Maria... Meu Deus mulher, que susto.
— Bom dia, minha querida ...
— Bom dia para você também.
— Que ânimo é esse mulher! É quinta-feira feira já, a folga está aí, anime-se.
— Não vai rolar colega, só de pensar no tanto de coisa que tenho pra fazer...
— Eu já te disse, para com essa loucura, essa correria besta, ninguém dá valor para o que fazemos não. Só querem resultado, quando você fica doente ou com algum problema, é descartado, lembra da Carlinha? O que fizeram com ela...
— Verdade, que injustiça fizeram com ela.
— Então, repensa esse seu jeito, diminui um pouco o ritmo...
As duas amigas caminharam um pouco mais, trocaram mais algumas palavras, cada uma foi para o seu setor.
Maria trabalhava na expedição, tinha o mesmo tempo de empresa que Daniela, porém, era o tipo de pessoa que não se importava muito com ritmo, produção, nada disso. Ela trabalhava no seu tempo, sem preocupação, sem dar ouvidos à pressão da chefia. Daniela era diferente, corria o tempo todo, nunca parava, mas, estava disposta a mudar, custasse o que custasse.
Daniela foi a primeira a chegar no setor, era sempre a primeira, nunca se atrasou.
Foi até o seu armário, colocou a bolsa, trocou, vestiu o uniforme da empresa, foi ao banheiro, escovou os dentes novamente. Aos poucos, um a um dos colegas foram chegando. A Márcia, Cleusa, Gerusa, Raiane, a maioria barulhentas, brincalhonas, riam de tudo, uma alegria descabida, escancarada em seus lábios, alegria essa que Daniela não compreendia. Diferente dela, nenhuma delas, nem mesmo os homens se trocavam antes dos diálogo diário de segurança, o conhecido, "DDS", deixavam para se trocar depois, sem pressa. As máquinas e os seus afazeres que esperassem. Era essa atitude que a amiga de Daniela mencionou mais cedo, era esse comportamento que não se encaixava no perfil dela.
O engenheiro, Alberto Sampaio, homem de perfil desagradável, estatura mediana, bem acima do peso, para mais de vinte anos de empresa, foi o último a chegar na sala de "DDS", sentia-se o dono da fábrica, nunca sorria, cara amassada, talvez noites ruins, cumprimenta o pessoal de um modo geral, quase inaudível. Nas mãos, o livro do "DDS", aberto na página do tema, ( Comportamento seguro). Todos fazem silêncio, enquanto ele lia o texto do tema, que em geral, era explanado por ele mesmo, seguido de algumas cobranças, raramente alguém comentava, com exceção de Daniela, sempre tecendo comentários e dando exemplos, os colegas acostumados, deixavam por conta dela, mas, naquele manhã de quinta-feira, ela estava disposta a mudar, custasse o que custasse.
Terminando de ler, primeiro veio as cobranças, a produção que deveria melhorar, na sua concepção, estava péssima, reclamou dos operadores no geral que não relataram os problemas do equipamento, não repassando para outros turnos, por último, perguntou se alguém tinha algo para acrescentar, relevante ao tema. É nesse momento em que todos olham para Daniela, já sabendo que ela ia falar qualquer coisa, havia colegas que a odiava por isso. No entanto, naquela manhã de quinta-feira, nenhuma palavra foi dita, olhares fixos em Daniela. O engenheiro não satisfeito, olha diretamente para ela, fixa os olhos nos dela, repetindo a pergunta. "Alguém tem alguma coisa para acrescentar ao tema". Daniela permaneceu em silêncio terrível silêncio que chamou mais a atenção do que qualquer palavra dita. Insistente, pela terceira vez, ainda olhando para Daniela, perguntou novamente, dessa vez, a pergunta foi direta. "Daniela, não tem nada para dizer". Nenhuma palavra foi dita, terrível silêncio que prevaleceu, todos os olhos se voltaram para ela, todos os pensamentos se questionando no que deveria ter acontecido.
O dia seguiu o seu curso.
Daniela manteve a postura de silêncio e distanciamento, após o "DDS", amigas e amigos vieram questioná-la, tentando entender tal atitude. Não havia respostas, nenhuma palavra foi dita, terrível silêncio que prevaleceu naquele dia. Ao término, Daniela voltou para casa aliviada, tranquila, a difícil atitude ganhou força nos dias posteriores, a mulher tão exemplar, tão correta, não parecia, aos olhos dos demais, a mesma pessoa.
Ainda no ônibus, a caminho de casa, um homem chamou sua atenção, estava a certa distância, o ônibus praticamente vazio, ele olhava o tempo todo para Daniela. Observando-o melhor, ela logo percebeu de quem se tratava o estranho, que, lentamente se aproximou, sentando-se ao seu lado, as lembranças daquele jeito de olhar, do sorriso torto, era ele, o rapaz do buquê de rosas da sua juventude.
Daniela sentiu o coração queimar, trocas de olhares sem palavras, terrível silêncio, nenhum dos dois sabia exatamente o que falar...