A panela de ouro
A PANELA DE OURO
Eu ouvi com estes meus ouvidos calejados de fuxicos e lorotas, a estória que eu vou te contar. Não foi na época da escravidão não. O Barbalho ainda estava no primeiro governo, quando o velho Rufino relatou o acontecido. Não tem muito tempo que os fatos se deram, portanto. No mundo globalizado, informatizado e dominado pela tecnologia, ainda se constata a ocorrência de mistérios, de estórias que o tempo está fazendo desaparecer. Narrativas da época em que as casas da cidade de Belém eram iluminadas por lamparinas, e somente as tabernas grandes tinham luz de petromax; essas estórias, quase lendas, ainda acontecem na Belém de hoje; na Belém que por força ideológica recebeu o batismo de metrópole das luzes. Alguns acontecidos remontam a períodos bem mais distantes da história desta cidade, fundada pelo navegante português Francisco Caldeira Castelo Branco; quando a Santa Maria de Belém do Grão Pará era apenas um arruado de casas, no tempo da escravidão, no Brasil colônia e no Brasil império. Etapas do tempo que se sucedem, mas que guardam como algo em comum, o sangue que corre nas veias das pessoas, os fenômenos psíquicos que afetam todas as gerações, os segredos ocultos, somente revelados a quem tem os dons e os olhos do espírito para vê-los e decifrá-los. Há um liame entre as gerações que se sucederam desde a fundação da cidade até os dias de hoje. Os primeiros habitantes desta Belém já centenária permanecem nas ruas, praças e coretos, becos e logradouros, invasões e condomínios fechados. Caminham entre o povo sorrindo, espiando as formas que impregnam as ruas, para sempre personificados através de seus genes, biótipos e fenótipos externados nas pessoas comuns, no índio, no negro, no branco, no mulato, no cafuzo, na mistura de todas as raças. Os primitivos habitantes da Belém antiga, da lamparina, dos candeeiros de azeite, da Praça da Pólvora, dos degredados, convivem fraternalmente com os moradores de hoje. Conversam nas ruas-estradas ensombradas de mangueiras, bebem tacacá nas esquinas, comem maniçoba nas barracas do Ver-o-peso, atiram pedras nas mangueiras para colherem frutas maduras e de vez, acompanham o círio, com os pés descalços, seguros na corda em busca de milagres, rogando à virgem por nós pecadores.
O difícil é convencer as pessoas quanto a veracidade do que aconteceu ou que ainda acontece, do que ainda se passa em todos os quadrantes da cidade. Estórias cheias de mistérios e sob certos aspectos inacreditáveis, para quem não viu com os olhos que a terra haverá de comer; para quem não ouviu com os ouvidos calejados de fuxicos e lorotas, como este um aqui. Repasso a misteriosa estória do modo que o velho Rufino expôs para todos nós, cachaceiros como ele, na taberna de seu Redenção, a única que vendia fiado para gente imprópria como nós. Não, eu não estou porre, nem encostei copo de bebida na boca. Meu juízo ainda não está embaraçado pela maldita. Apenas quando terminar de contar a estória da panela de ouro, ocorrida no bairro do Guamá é que vou tomar a primeira, a abrideira, para não dizerem que estou aumentando a potoca por causa do efeito etílico. Aliás, não é potoca. Rufino assevera e jura pela senhora mãe dele, dona Gertrudes, que o fato é real. Eu acreditei, porque Rufino não é homem de mentiras. Com ele é sim, sim, não, não, como diz a Bíblia: o resto provém do maligno. Pois bem, Rosalvo, depois desta enfadonha introdução, vamos à estória que não é potoca.
Seu Apolinário, residente na passagem Sururina, teve um sonho que o deixou intrigado. Uma mulher negra ainda jovem e bonita, que dizia ter sido escrava no tempo do império, conversava no sonho com ele. A mulher negra dizia que era trisavó de Apolinário; que tinha sido mucama da esposa de um português a quem ela, a negra, pertencia. O português era um homem muito rico e bondoso. Era proprietário de várias olarias e vacarias, casas de aluguel, tabernas e armazéns. A esposa dele, porém, era uma megera. Maltratava os escravos e os empregados; espancava a qualquer pretexto os negros. Ela passou a sentir mórbido ciúme da formosa negra, da escrava que no sonho de seu Apolinário dizia se chamar Lodí e afirmava que era trisavó dele.
A despeito de ser um homem bondoso, o português Felipe - era esse o nome dele - conduzia sua família e seus negócios com autoridade. Não, não era Joaquim, nem Manoel, o nome dele: era Felipe. A escrava negra cuidava bem do velho, ajuda no comércio, cozinhava e tratava bem de Felipe. Era mais querida que os próprios filhos de Felipe, o que deixava Isabel cada vez mais enciumada. Isabel era a esposa dele, seu Felipe. Mas o relacionamento deles parava por aí, porque Lodí estava prometida para o negro Lourenço, empregado de Felipe. Dona Isabel, a megera esposa do português Felipe, não tolerava o modo como Lodí cuidava do marido dela, mas não tinha coragem de reclamar, como eu disse o português mantinha uma autoridade patriarcal. A escrava Lodí disse para Apolinário no sonho que a família do português Felipe, dona Isabel, os filhos do casal - eram três - e Lodí moravam na rua da cadeia, hoje denominada rua Conselheiro João Alfredo, no centro da cidade. Uma das propriedades de Felipe, uma olaria, que naquela época fabricava tijolos e telhas para toda a cidade, ficava no Guamá, próximo ao igarapé do Tucunduba, onde também funcionava um engenho de cachaça e açúcar. Felipe passava a maior parte do tempo com a família nesse engenho. Foi lá que se passou a estória da panela de ouro.
Não, não quero beber a primeira enquanto não encerrar essa estória, obrigado Rosalvo. Deixa eu prosseguir: a escrava Lodí, trisavó de seu Apolinário, não apareceu somente uma vez em sonho para ele. Durante várias noites Apolinário conversou com a ancestral encantada. A cada encontro ela revelava um trecho do enredo que repasso a vocês. Ela disse que Felipe passou a sentir fortes dores no peito. Durante vários meses ele suportou a dor sem se afastar do trabalho. Mas chegou um tempo que as dores passaram a impedi-lo de gerenciar seus bens. Um dos filhos assumiu o comando dos negócios e Felipe passou a ficar mais tempo no engenho, sob os cuidados de Lodí. A doença que ele tinha era o mal de Chagas, transmitida pelo inseto barbeiro. Mas no período em que se passou esse fato, ninguém conhecia essa doença, seus sintomas, o diagnóstico, muito menos o tratamento. A cada dia o português definhava mais. Com isso Isabel passou a dar ordens na casa e a maltratar Lodí. Percebendo a mudança de comportamento da esposa e sem forças para modificá-lo, colocando-a novamente sob seu domínio patriarcal, Felipe preocupou-se. Certa noite, percebendo a iminência de seu passamento, o português chamou Lodí e disse que se ele morresse de repente, a escrava deveria procurar, no quintal da vacaria, em um local afastado, uma frondosa árvore de mangueira. Ela deveria convidar Lourenço para ajudá-la a cavar no pé da árvore. Depois de cavar cerca de dois metros de profundidade ela encontraria uma panela de barro cheia de moedas de ouro. Com o dinheiro ela comprasse sua alforria, casasse com Lourenço e se estabelecesse com o marido como uma pessoa livre.
Poucas semanas depois o português se foi. Ele foi enterrado em um cemitério entre as Ruas São Vicente de Fora e Cruz das Almas, ruas da Belém antiga que ficavam próximo à Praça da República, que como se sabe era denominada Largo da Pólvora.
Com a morte do português, Isabel passou a reinar soberana e absoluta na casa de Felipe. A qualquer pretexto surrava e mandava para o tronco os escravos, especialmente Lodí. Ela proibiu o casamento da trisavó de Apolinário com Lourenço. Chorando e invocando o nome do seu falecido marido, Lodí pediu para Isabel autorizar o casamento. O nome de Felipe, mencionado por Lodí, irritou ainda mais Isabel, que mandou colocá-la no tronco por três dias, sem comida e sem água. Lourenço foi tomar satisfação com Isabel, procurando saber a razão do castigo. Isabel mandou que capitães-do-mato, que faziam o papel de feitor, colocassem para fora da propriedade o negro Lourenço. Indignado o rapaz reagiu com um podão nas mãos. Seráfico, um dos feitores, matou-o com um tiro de besta no peito. Naquele tempo, o senhor podia matar um escravo que não acontecia nada. O escravo era coisa, não era gente. Quando soube da morte de Lourenço, Lodí fugiu do tronco e escondeu-se para as bandas do Acará. Ela estava grávida de um menino, que pariu meses depois. Lodí, porém, morreu com as dores do parto, sem poder criar o filho, que passou a ser tratado por um casal de velhinhos. O fato é, Rosalvo, que Lodí morreu sem conseguir chegar perto da mangueira, na Passagem Sururina, onde estava enterrada a panela de ouro. Desde essa época, que já vai longe no tempo, no além, ela guardou o segredo que resolveu revelar, em sonho, para seu Apolinário, seu trisneto. Ela, Lodí, conseguiu convencê-lo a escavar junto ao tronco da mangueira, a procura da panela de barro, recheada com dobrões de ouro. Não podia ser em qualquer horário, nem em qualquer dia: somente à meia noite ele poderia encontrar o tesouro. Lodí pediu a ele que não revelasse nada a ninguém. Nem à esposa dele, dona Terência. Ele teria que cavar sozinho em busca da botija. A escrava Lodí avisou que parte do dinheiro, deveria ser doado para uma igreja ou distribuída entre os pobres, ou então, o beneficiário da revelação não teria paz. No sonho, seu Apolinário prometeu para a avó que cumpriria sua vontade.
Assim foi feito: na véspera do dia de finados, seu Apolinário pegou um enxadeco e uma pá e à meia noite dirigiu-se para o pé da mangueira. Depois de meia hora de cavoucamento, ele bateu com a picareta na panela de barro. Ele ouviu como que um grito, vindo das entranhas da terra. Égua, quando eu conto essa versão, me dá um calafrio medonho. Rosalvo, agora me passa a garrafa da cachaça, que tá na hora de tomar um gole, para eu temperar a voz!
Depois de alguns minutos, seu Apolinário resgatou a panela inteirinha, cheia de dobrões de ouro da época do império, com a efígie de dom Pedro I. Sem dar alarde, seu Apolinário vendeu em um antiquário o ouro, mais caro devido ao valor histórico e arrecadou uma nota preta. Para ele, que sempre passou necessidade na companhia de dona Terência, era dinheiro que nem burro acabava. Apolinário comprou casa, apartamento, carro, casa de praia, jóias e roupas caras. A primeira providência que ele tomou foi largar a pobre da dona Terência, que ainda hoje veve no Guamá, quase pedindo esmola. Esqueceu que tinha de dar parte do tesouro desenterrado para a igreja ou para os pobres e passou a gastar em farras o dinheiro que a avó - a escrava Lodí - lhe doou. Na véspera de finados de 1996, ele programou uma farra com vários amigos e muitas mulheres, a bordo de um barco - o "Lírio do Mar" - que ele havia comprado com parte do dinheiro proveniente da panela de ouro. Muita gata boa, música ambiente e uísque da melhor qualidade refestelaram a festa de seu Apolinário, que mais parecia um lorde ou um paxá, rodeado de odaliscas. Ele bebeu muito uísque. Parecia estar alegre, sorvendo a bebida pelo gargalo do litro. O barco singrava a Baía do Guajará em direção à Ilha do Marajó, onde a farra continuaria no Hotel Pousada dos Guarás. Mas ele não conseguiu chegar no destino. Exatamente à meia noite, bêbado, ele tombou do tombadilho da embarcação e mergulhou para sempre nas águas barrentas da Baía. Os filhos, que ele desprezou depois que enricou, fizeram muitas buscas atrás do corpo dele. Até uma lancha do Corpo de Bombeiros foi empregada nas buscas, mas ninguém encontrou o corpo de seu Apolinário. O defunto nunca boiou. Pescadores do Marajó encontraram um corpo deformado, roído até os olhos por siris, que são bichos carnívoros. Mas Terência não reconheceu como sendo do marido. Ela acha que ele não boiou porque está vivo em algum lugar do além, prestando conta com a escrava Lodí, sua trisavó.