Pisando na merda

Zími e Silvano tinham várias piadas sobre o fato de Mila Cox às vezes pensar em inglês.

Quando criança, ela conviveu bastante tempo com sua tia Sara Cox, que havia morado muitos anos na Inglaterra, depois de viver a juventude numa casa proletária na Penha.

Sara tinha ido para lá aos dezoito anos, para estudar. Seus pais economizaram dinheiro por muito tempo para que isso fosse possível, assim que ela atingisse a maioridade.

Então casou-se com um inglês funcionário de pub para viabilizar uma permanência mais longa no país.

Sara foi fundamental na educação musical da sobrinha. Foi quem lhe apresentou os discos que vieram a moldar o gosto musical da garota. Estava à frente do tempo das outras pessoas de sua família.

Previu que o futuro seria de luta e resistência contra a barbárie fascista.

Conversavam em inglês, e Mila Cox, ainda criança, aprimorava o entendimento do idioma traduzindo as letras das músicas que ouvia.

Sara dizia para a sobrinha que muitas pessoas se irritam com aquelas que adotam padrões de vida mais individualizados. Sentem-se insultadas, humilhadas e reduzidas a seres ordinários.

Já naquela época, Mila Cox já pensava que a falta de uma resposta definitiva parar o sentido da vida era algo a ser encarado como liberdade Não havia a pressão e nem a tristeza de um futuro pré-decidido.

Certa vez, ouviu da tia que a vida é uma longa preparação para algo que nunca acontece. Diversas vezes ouviu também que a utopia é algo que está sempre no horizonte, e que se afasta à medida que avançamos, e que serve justamente para não ficarmos parados no mesmo lugar.

A tia lhe contava coisas do século vinte, fazendo comparações com fatos ocorridos no presente. Sempre lembrava que também há riqueza potencial naquilo que não precisamos ter.

Havia uma foto das duas na sala do apartamento que Mila Cox dividia com Zími. Mila Cox tinha quatro anos, e Sara tinha vinte e oito.

A tia usava uma camiseta do Television, que dizia ser melhor que Talking Heads. A sobrinha nunca havia chegado a nenhuma conclusão sobre isso, e gostava igualmente das duas bandas.

Então, em 2024, com vinte e um anos, ao saber da morte de Wayne Kramer pela internet, Mila Cox disse: "Oh fucking god!", na sala do apartamento que dividia com Zími. Ele e Silvano estavam presentes.

Os dois sabiam que se tratava de algo sério, e portanto fizeram as piadas antes que ela contasse o ocorrido.

Enfim, ela contou e foi feito silêncio por trinta segundos.

"Caiu mais um pilar de resistência. Tinha sonoridade e atitude." - disse Zími.

"Pelo menos ele teve uma longevidade razoável para a vida que levou, e provavelmente terá mais sossego agora do que teve em vida. E fica o legado. Falava para as ruas, era mais próximo da nossa realidade, mesmo em outro país e em outra época, diferente de gente que fazia parte de bandas que tinham aviões, falavam de escadas para o céu e tinham contas bancárias milionárias. Medalhões que eternizaram sua obra e estão com idade muito avançada, ou mortos. "- disse Silvano, que é uruguaio mas não tem sotaque, porque vive no Brasil desde muito criança.

"Ainda esse ano cairão outros pilares, entre eles, medalhões que no nosso imaginário pareciam eternos . Pessoas que quando eu era moleque já estavam consolidadas na carreira, com grana e que há algumas décadas causavam em mim um sentimento que beirava a inveja. Hoje, alguns ainda são milionários, mas estão no fim da vida. Deve ser triste para eles, porque para esse caso o dinheiro não é solução" -disse Zími.

"A melhor idade é estar vivo. Os próximos pilares a cair podem ser até mesmo vocês, isso seria devastador pra mim. E apesar de eu ainda ser jovem posso ser eu a próxima a morrer, sabe-se lá como. Nesse ponto estamos todos nivelados. Viver contra a existência de música marqueteira popularesca é uma boa causa." - disse Mila Cox.

Dias depois, quando ela escrevia uma música sobre tabus que oprimem a sexualidade feminina, souberam da morte de Damo Suzuki.

A tristeza foi ainda maior, especialmente para Zími, que o tinha como exemplo, quase como um guru artístico. Ele havia presenciado um show de Suzuki em São Paulo, já em carreira solo.

Agora que moravam na região central, viviam perto do local onde aquele show aconteceu.

Na ocasião, Zími havia ficado surpreso com o número de garotas presentes na platéia, o que só fez aumentar sua admiração por esse artista magnífico.

No dia da morte dele, os três reouviram discos do Can, antiga banda de Damo Suzuki.

Durante a audição, Zími fazia anotações num caderno, para depois editá-las e transforma-las em alguma música nova para o projeto musical Crop Circles, que mantinha com Mila Cox.

Ela, que à noite ficou embasbacada ao saber que um censor da ditadura brasileira chegou a emitir um mandado de prisão para o filósofo Sófocles, pela autoria da peça Édipo-Rei, escrita cerca de quatrocentos e vinte e sete anos antes de Cristo, e que seria encenada naquele período, no Brasil, caso a censura liberasse.

Pensou então na maluquice que seria viver num tempo em que teria que enviar suas músicas para censores completamente senis, reacionários e ignorantes, sabendo que nenhuma delas seria aprovada para lançamento.

Sem contar as outras dificuldades. O alto custo de qualquer gravação feita na época, além da absurda falta de informação, por conta da censura à imprensa e a outros artistas da época, e isso somado ao fato de que muitos discos internacionais relevantes não eram lançados no Brasil, e quando eram, custavam caro.

Foi logo trazida à realidade de seu tempo por Zími, que insistia em dizer que sua vida jovem no último quarto do século vinte foi uma experiência nada saudosa, ao mesmo tempo em que tinha sérias críticas e restrições ao primeiro quarto do século vinte e um, em que a informação abundante e fácil formou uma geração fútil, que não lê, ouve músicas ruins e tem uma vida social debilitada pela tecnologia.

Para Mila Cox, Zími e Silvano, a tecnologia trazia benefícios e algumas desvantagens.

Assim como a tia de Mila Cox, tanto Zími como Silvano. falavam para ela coisas do século vinte e faziam comparações entre o presente e o passado.

Ela ouvia muito deles também sobre o fato dela ter nascido no século vinte e um. Ela aprendia com eles o uso de recursos primitivos em casos de emergência. Coisas do século passado, que eram corriqueiras.

Já sabia o que era gambiarra antes que conhecesse a palavra.

Tinha a vantagem de considerar desde sempre que todo o Rock da segunda metade do século vinte foi criado em condições gerais que não mais se aplicavam.

A convivência com gente mais velha também lhe ensinou que sempre há um limite além do qual a tolerância deixa de ser uma virtude.

Então foi à padaria e a televisão estava ligada num programa popularesco da programação aberta.

Viu uma pseudo celebridade do momento, que ela não sabia porque tinha fama, e muito menos qualquer motivo decente para que aquele retardado tivesse espaço na televisão aberta, falando para milhões de pessoas.

Falava de si na terceira pessoa, e era ainda mais jovem que ela.

MIla Cox lembrou mais uma vez de sua tia Sara, que desmistificava para a sobrinha, desde cedo, a fama e os meios de comunicação convencionais, que apresentam conteúdo capaz de convencer milhões no rebanho humano, deixando a grande massa retardada e facilmente manipulada.

Matando uns aos outros por motivos de fé cega em coisas sobre as quais nada sabem., especialmente o charlatanismo religioso ao qual estão sujeitas, futebol, política e música.

Ela tomou uma cerveja e ficou olhando a televisão e os circunstantes à sua volta.

Saiu e foi comprar cerveja no mercado antes de voltar para casa, pois era mais barato.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 07/03/2024
Código do texto: T8014700
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