A GALINHA NOSSA DE CADA DIA

Mais um dia se vai e lá está Praxedes, a ouvir música no rádio do automóvel enquanto aguarda a esposa vir do mercado com sua compra.

Talvez inspirado por alguma das canções que ouve, ou por ser habitualmente chegado às reflexões, o metódico e organizado cidadão pergunta-se quantas vezes tem de repetir o ritual de trazer a mulher ao mercado para comprar algo de última hora.

A sensação é de que isso ocorre cotidianamente. Difícil passar um dia sem que ela ou a cozinheira não constate a falta de carne, peixe, legume ou de mero condimento, julgado imprescindível ao preparo do almoço. Logo ouve, a ressoar na casa, a expressão categórica e inescapável: meu bem, temos de sair. Urgente.

Praxedes não desgosta de sair, mas, de preferência, para ir ao cinema, a um restaurante ou a outro lugar aprazível. Supermercados há muito deixaram de figurar entre seus locais favoritos. Muito antigamente, até gostava de fazer compras ali, bem como em padarias. Com o passar do tempo, contudo, o lazer de escolher frutas e outros bens de consumo do gênero veio reduzindo-se. Além disso, parece-lhe cada vez mais raro encontrar algum produto diferente, que lhe desperte a curiosidade gastronômica. Percorrer os corredores e prateleiras de tais estabelecimentos causa-lhe forte impressão de mesmice.

Outra circunstância que reforça sua má vontade em ir ao supermercado consiste na usual interrupção da leitura de um livro ou jornal na qual se encontra imerso. É como se houvesse o conluio entre a esposa e a cozinheira para propositalmente sabotar a atividade de ler, tão prazerosa para Praxedes. Ele até tenta reagir às vezes, na busca de determinar quão urgente se mostra, de fato, a ida ao mercado. Sabe de antemão, porém, que decisão de “madame” dificilmente se posterga (revogar-se, então, jamais!). Urgente, sempre, pois não?

Não resta alternativa senão dobrar o jornal ou fechar o livro na página interrompida, de modo a retomar a leitura em seu regresso.

Sorte sua também gostar de música. Pelo menos, conta com autorização para permanecer no carro e desfrutar da rádio pelo tempo que for. Sim, porque a missão urgente da esposa pode extrapolar a compra do artigo indicado e envolver alguns tantos itens a mais.

O mais curioso dessas urgências reside na ampla predominância da galinha entre os ausentes de última hora. Só nesta semana, que mal chegou ao meio, já se contabilizam três saídas para comprar peitos, coxas e sobre-coxas. Tudo bem, reflete Praxedes, que ele e a mulher, entrados na casa dos setenta, tendam a consumir mais carnes brandas, em especial a de frango. Obrigar-se a sair três vezes para a compra do mesmo produto, no entanto, constitui aparente aberração para qualquer mente minimamente metódica.

Ele pensa em recomendar à esposa que leve maior quantidade de galinha para casa, mas então se lembra de que ela já contra-argumentou, em ocasião passada, que o congelador não comporta mais carne. Nem paga a pena voltar a aludir à possibilidade de melhor planejamento no uso do congelador. Sua opinião já foi refutada anteriormente, voltará decerto a sê-lo.

Sem vislumbrar soluções imediatas, sob a égide da racionalidade, resta ao pobre cidadão continuar a ouvir as cançõezinhas da rádio e a curvar-se ao peso irresistível da galinha de quase todos os dias.

Olha para o céu, logo chama sua atenção a nuvem branca em forma de galináceo. Só faltava mais essa provocação! Observa, com resignada ironia, a formação nebulosa, que se move lentamente, impulsionada pelo vento, até ficar parada bem acima do ponto onde seu carro se acha estacionado.

Tentado a dar asas (mas não de galinha) à imaginação, Praxedes projeta a nuvem a escurecer e a despejar uma chuva de ovos sobre a terra. As pessoas correm com seus carrinhos de compra no intuito de recolher o maná que vem dos céus. Crianças catam as penas que também caem para cocares e petecas. Todos têm direito à diversão, até esse mísero mortal privado de suas leituras.

O som de pancadas tira Praxedes do mundo das nuvens. A senhora chegou com as sacolas de compra e bate na janela do porta-malas para que ele o destrave. Finda a urgente missão do dia, está na hora de voltar à casa com a galinha de verdade. Sem cacarejar vitória, todavia, já que amanhã é novo dia...

Janeiro 2023.

Outros contos de Praxedes neste site: junho 2023; novembro e outubro 2017.