A Trindade
Era uma cena comum. Uma menina olhando através da janela de um ônibus. A paisagem de sempre, do caminho diário para o cursinho: comércios e comerciantes abrindo suas lojas. Vários rostos ocupados e corpos se movendo quase automaticamente, no ritmo de toda manhã. Até que algo direcionou o seu foco: um homem em cima de um papelão. Em uma cidade grande, não é uma imagem rara. O que a consternou e a fez refletir durante o dia sobre foi o fato de que ele estava sorrindo um sorriso largo, com uma expressão de serenidade a qual há muito não experimentava, apesar de ter uma casa, entre tantas outras posses que ele não possuía.
— No que será que ele tá pensando? – Refletiu – Deve tá agradecendo... – pensou emocionada.
Ela não poderia saber e nunca soube que estava certa. O homem em situação de rua, conhecido como João da 506 Sul – a quadra da W3 Sul, em Brasília, na qual, geralmente, dormia – estava agradecendo o Dia, o Amanhã e o Sol, que eram como uma trindade para ele. Saber que eles sempre existiriam com toda a sua beleza, era sua única motivação, de onde vinha seu instinto de sobrevivência.
— Obrigado...Obrigado... – era só o que pensava quando o olhar da menina recaiu sobre ele. Não possuía um vocabulário amplo. Durante o dia, essa palavra era, praticamente, tudo o que dizia. Ao acordar, ao receber moedas ou refeições e ao dormir. Não havia novidades que contar nem alguém para ouvi-las, caso existissem. Não construiu amizades duradouras durante a vida para trocar experiências e opiniões, pois os transeuntes estavam ou fingiam estar com pressa sempre e os seus companheiros em situação de rua se mudavam constantemente. Ou iam para abrigos ou trocavam de ponto, como chamam os locais em que permanecem para pedir dinheiro ou refeições. A maioria se colocava nas calçadas das lojas, perto das entradas, mas não tão perto a ponto de serem enxotados por clientes ou pelo próprio dono do estabelecimento.
João permanecia em frente a uma loja de construção. Evitava sair de lá. Alguns companheiros foram mortos ou machucados por engano, por se colocarem nos pontos de outros.
— Obrigado...Obrigado... – repetiu segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, até que, na quinta-feira, disse mais palavras.
Acordou, agradeceu como sempre e, dessa vez, ninguém o observou e refletiu sobre o que ele pensava. As ruas estavam vazias. De vez em quando um carro perturbava o silêncio. Com medo, João se levantou depressa, arrumou seu ponto, colocou seus poucos pertences em um saco nas costas, o papelão debaixo do braço e caminhou. Primeiro sem rumo, desnorteado com a situação, com a miséria de calor humano. Depois, se deu conta de que tinha muita fome. Não comeu na noite anterior.
Andou, dessa vez, com rumo certo, em busca de comida em uma padaria algumas quadras de onde estava. Foi apertando a barriga para que ela se calasse um pouco. Ao chegar lá, viu que o estabelecimento estava aberto, mas com um movimento muito inferior se comparado às vezes em que esteve naquele lugar. Seu coração palpitava rápido ao mesmo tempo em que o seu estômago se comprimia. Precisava de comida para o segundo, bem como de informações para acalmar o primeiro. Esperou, como sempre, do lado de fora, na calçada, atento, já que aquele poderia ser o ponto de alguém.
Se cobriu com uma coberta a qual estava na trouxa que carregava nas costas e esperou. Cinco minutos depois, uma mulher de meia-idade deixou a padaria.
— Moça! – disse em um tom intermediário, sem gritar nem falar baixo. Era uma técnica que desenvolveu ao longo dos anos nas ruas, para não assustar as pessoas nem deixar de ser ouvido. Mesmo assim, a mulher se assustou.
— Ah! Oi! Eu não tenho nada pra te dar hoje... – afirmou com várias sacolas cheias de alimentos em mãos.
— Tudo bem, moça! Só quero saber o que tá acontecendo... Por que não tem quase ninguém na rua? É o apocalipse? – perguntou amedrontado.
Primeiro, a mulher segurou um riso. Poucos segundos depois, se compadeceu do homem.
— É por causa de uma doença que se espalhou pelo mundo... É um vírus chamado Coronavírus. Aí ele se espalha por saliva e por objetos que as pessoas tocaram com as mãos sujas... Que espirraram em cima também... Parece uma gripe. É só o que a gente sabe. Aí é pra ficar em casa... – disse essa última palavra como se fosse um palavrão. Era sem sentido e parecia uma ofensa pronunciá-la para alguém como João.
— Obrigado por avisar, moça... – falou como se ela o tivesse contado tudo por livre e espontânea vontade.
— De nada! – E foi embora orando pelo homem. No meio da conversa, pensou em dar algum alimento das sacolas para ele, mas estava com pressa e com medo.
João da 506 Sul, agora mais próximo de João da 502 Sul, estava muito pensativo. Todas as coisas que ouviu sobre fim dos tempos, pestes e pragas saíam do seu inconsciente e se encaminhavam para o seu consciente. Ficou parado olhando para suas pernas cruzadas sem enxergá-las, vendo seu pensamento.
Não sabia ler, portanto, tudo o que conhecia era o que ouviu: mentiras, verdades, mitos, filosofia, senso comum, ciência, enfim, opostos que se fundiam em sua mente. Não sabia discernir qual informação pertencia a qual categoria, o que conhecia eram frases e argumentos soltos que armazenou durante a vida, como um papagaio, sem racionalizá-las. Tudo em que podia acreditar era o presente. Distinguia-se da maioria, por isso também. Enquanto todos pensavam no passado ou no futuro, raramente, no agora, era o último que restava a João. Ele não sabia viver, e sim, sobreviver, por isso voltou ao presente, para a sua zona de conforto.
Nesse momento, quando passou a ver seus pés, viu também uma mão abanando na sua frente.
— Oi! Moço... – disse um adolescente franzino com o uniforme da padaria.
— Oi! – respondeu como se houvesse acabado de acordar de um sono profundo.
— Desculpa se te acordei...
— Já tava voltando, filho...
— Ah sim... – sorriu confuso – Eu trouxe um misto-quente e café com leite pro senhor. Não deve tá sendo nada fácil agora que tá tudo fechado...
— É... Muito obrigado! Muito mesmo!
— De nada! Ah! Aí não se preocupa que eu te trago algo pra comer mais tarde... É melhor o senhor ficar aqui, perto de alguém... – disse preocupado – vai saber o que pode acontecer agora com essa doença... Com a violência, sei lá... – desabafou.
— Igor! Tem pouco cliente, mas ainda tem trabalho! – alguém gritou de dentro da padaria e o garoto voltou ao estabelecimento, contrariado.
A comida estava levemente salgada, pelas várias lágrimas que escorriam do rosto de João. Assim como os lanches, o almoço e o jantar que Igor levou para ele mais tarde naquele dia, sempre acompanhados de uma conversa rápida.
Após entregar um caldo quente para ele, o menino e os outros funcionários começaram a fechar a padaria. Os postes eram o mais próximo do Dia que João teria noite adentro.
— Se cuida, tá?! Deus te abençoe! – se despediu, relutante, o menino.
— Pode deixar, meu filho! Não se preocupa... – os dois sorriram e João ficou só.
Ele não tinha medo da noite como as outras pessoas, estava acostumado com os drogados que passavam agitados pelas ruas, com as prostitutas e os cafetões que o enxotavam de perto dos seus locais de programa, entre outras situações incomuns para quem tinha uma moradia fixa.
Essa noite, pelo contrário, foi tranquila em relação a perturbações externas. Internamente, foi péssima para João. Ele não queria preocupar Igor, por isso não disse nada, mas passou o dia com uma febre baixa a qual foi piorando e se tornando alta de madrugada.
Perto do amanhecer, ele estava ardendo em febre, tremendo e com uma leve falta de ar. Estava morrendo, sozinho, ou melhor, na companhia de um vírus dentro de si. Começou a delirar, a pensar no seu passado. Na infância, já nas ruas, no quanto apanhou de seus pais, quase sempre drogados e em quando fugiu deles, na adolescência, indo para outros locais, não por esperança de uma vida melhor, mas para sobreviver. Nessa retrospectiva, lembrou também dos dias como adulto, que se seguiram quase iguais, exceto, aquele dia presente. Em que experimentou uma caridade fora do comum, a qual não se repetiria mais, não com ele. Ia morrer em pouco tempo e sabia disso.
De repente, um afago em seu rosto o fez voltar ao presente. Era a trindade: o Dia, o Amanhã e o Sol. Gentilmente, o acordaram. Com a pouca força que lhe restava, João olhou para o céu e agradeceu. Nesse processo, percorrendo o alto com o olhar, percebeu que os raios solares apontavam um caminho para ele, na direção leste. Entendeu, pelo delírio, e pelas frases que ouvira durante a vida, sobre a luz no fim do túnel, que deveria fazer um último esforço e seguir naquela direção. Acreditou que encontraria anjos ou seres celestiais que o levariam para os céus. Estava enganado. O seu corpo cambaleante, quente, fraco e seus passos curtos o levaram a outro lugar.
Ao chegar na claridade para a qual se dirigira, tropeçou em si mesmo e caiu no chão, amortecido pelo grosso pano que o cobria, o defendendo do piso e o matando, ao aquecê-lo ainda mais. Em sua mente, caíra em uma nuvem. Era, na verdade, asfalto, mas não um asfalto qualquer. Havia marcações nele, indicando que era proibido estacionar ou cair estirado, no caso, ali, porque se tratava de uma vaga para ambulâncias. Fora do delírio, enfermeiros o colocaram em uma maca e o levaram para dentro do hospital. Na visão de João, anjos subiram na nuvem em que o colocaram e o carregaram para os céus.