A Metamorfose
Gregório Santos dormiu mal.
Mal-humorado por causa da briga com a namorada naquela noite e pelo consequente término do relacionamento de quatro anos. Mal “das pernas”, porque gastou grande parte de suas economias no último jantar romântico, antes de a quarentena começar. Por fim, malvestido, com uma cueca furada apenas, apesar da janela aberta e da chuva sem trégua.
Acordou muito pior. Com o que parecia ser uma ressaca mental. Porém, se tratava de algo mais grave, o novo Coronavírus. Era uma matemática simples: “Coração partido”, mais passar frio à noite, mais “contatos imediatos de primeiro grau” com uma ex-namorada cujos pais voltaram de viagem para a Europa recentemente é igual a contaminação por Covid-19.
Depois de uma longa negociação com a sua vontade incontrolável de permanecer deitado, finalmente, se convenceu – precisava terminar um trabalho EAD -, se levantou, vestiu uma bermuda, uma camiseta, seu chinelo e foi ao banheiro escovar os dentes, entre outras coisas.
- Bom dia! – Disse - forçosamente - e ouviu dos seus familiares.
Seu pai estava sentado no sofá, com um copo de café na mão e um “laptop” no colo. Esperava-se que trabalhasse menos em “homeworking”, trabalho em casa, durante a quarentena, do que na empresa. Ledo engano. Naquele começo de manhã já havia trabalhado durante algumas horas. Era disciplinado até demais.
Encontrou sua irmã lambendo os dedos na cozinha. Estava comendo o pão doce que a mãe assou e cobriu com melado de açúcar.
- A senhora já faz tanta coisa, mãe! Podia só comprar um pão. Ia ser o mesmo custo de fazer e ia te dar menos trabalho – aconselhou ranzinza Gregório.
- Ah! Mas não é a mesma coisa, Gregório...
- Está bom, se a senhora...
Sua fala foi interrompida por um espirro.
Há alguns meses todos ignorariam e continuariam o próximo segundo de suas vidas, mas, em meio à pandemia do novo Coronavírus, as reações foram diferentes.
- Tampa essa cara, garoto! Pô! – A irmã.
- Passa álcool em gel antes de comer! – O pai.
- Você está bem?! – A mãe.
- Estou, mãe! – Só estou com o nariz meio entupido e o corpo meio mole, está tudo ótimo! – Disse com um sarcasmo que só ele entendeu, já que não havia contado a razão de ter dormido mal em vários aspectos.
- É melhor medir a temperatura... – Sr. Santos sugeriu precavido.
Rapidamente a Sra. Santos buscou um termômetro eletrônico e o entregou a Gregório, que o posicionou na posição clássica, abaixo da axila.
Nunca na história dos períodos de doença na família aquele medidor demorou tanto para tocar. Seu pai terminou o café e, junto com o líquido preto, foi toda a saliva que ele possuía no momento, engoliu seco. Greta, sua irmã, quase terminou o enorme pão doce sozinha, enquanto a Sra. Santos completava a volta no terço imaginário. Gregório era meio cético, então se sentou na cadeira, bocejou, ato seguido de uma tosse seca, e começou a cochilar, aproveitando o silêncio.
- Pi...Pi...Pi...Pi... – ecoou.
Calmamente, retirou o termômetro debaixo do braço e observou a tela eletrônica.
- 38°. É febre baixa, não é? – Disse calmo.
- Mas é febre! – Respondeu sua mãe.
- Você teve contato com alguém que viajou para fora, Gregório? – Investigou Greta.
- Eu só saí com a Raquel antes do isolamento. Depois a gente só conversou por Skype, lembra?
- Então foi isso, filho – começou sem graça Sr. Santos. Hoje de manhãzinha, até estranhei a hora, ela me mandou mensagem para dizer que ela e os pais se contaminaram e que, provavelmente, você também estaria contaminado. Achei estranho não falar diretamente com você. Acho que é porque ela sabe que eu fico de olho nas redes sociais por causa do trabalho.
- É, deve ser! – Mentiu Gregório, indignado e xingando a ex-namorada de todos os nomes ruins possíveis.
- Desculpa, filho, mas vamos ter que te isolar – afirmou seu pai.
E assim começaram a cumprir o protocolo de segurança da família Santos, estabelecido em uma reunião na sala com todos sentados no sofá, exceto Gregório, em pé e com uma máscara improvisada.
O infectado só pode sair do quarto para ir ao banheiro.
O banheiro deve ser desinfetado por alguém sempre que ele o utilizar.
Ele poderá tomar banho de Sol em uma cadeira reservada para ele e desinfetada, como o banheiro.
Deve utilizar uma máscara quando deixar seu quarto.
Alguém levará todas as refeições para ele e higienizará as louças separadamente.
Tudo o que vier daquele quarto deverá ser separado: lixo, roupas etc.
- Acho que é isso, o arquivo está pronto! – Exclamou Sr. Santos ao terminar de digitar “etc” em um documento que salvou no computador com o título: Quarentena.
- É sério que o senhor criou um documento? – Perguntou desapontado, Gregório – Não precisa, pai. Eu não vou colocar vocês em risco, pode deixar!
- Desculpa, filho!
- Tudo bem, pai!
- Agora falta dividir as tarefas... – lembrou, com receio, Greta, a irmã. O seu medo de responsabilidades parecia maior do que o de ficar doente.
- Verdade!
- “Poisé”...
Depois de alguns segundos improdutivos a sugestão veio do doente.
- Minha mãe cuida de mim e das minhas coisas, não é, mãe?
- Isso é óbvio! – Desdenhou Greta.
Gregório olhou torto para ela e bufou.
- Vai lá, gênia, fala o seu plano então...
- Ah, sei lá! Só não quero ter que cuidar de você, nem da casa! Quero poder sair também, dar uma andada por aí... Minha mãe vai ter que ficar aqui também, já que vai ter muito contato com você...
- Ah, então você cuida de ir ao supermercado e à farmácia, Greta – raciocinou Sra. Santos. Greta ia protestar quando percebeu que não possuía argumentos contra aquela retórica arquitetada pela sua mãe.
- Está bem! Eu faço isso...
Gregório teve medo de ser espezinhado novamente por sua irmã, mas seguiu em frente e expôs seu pensamento:
- Meu pai pode cozinhar e cuidar das louças de vocês. Eu sei que minha mãe é cuidadosa, é mais porque ela vai ficar sobrecarregada, como sempre!
Sr. Santos engoliu seco novamente.
- Você tem razão, Gregório! – Admitiu – posso me organizar para fazer isso...
Se entreolharam por um momento. Toda aquela situação era muito inusitada. Estavam inseguros, porque a rotina mudaria drasticamente. Mais do que nunca, cada um assumiria um papel muito importante para a sobrevivência e a subsistência da família, como cada soldado de uma legião romana. “Um por todos e todos por um!”. Todas essas frases clichês apareciam em suas mentes como uma tentativa frustrada do cérebro de motivá-los.
- Vai ficar tudo bem! – Disse Gregório.
Por mais que não estivesse bem, nem de corpo, nem de mente, disse isso com uma falsa convicção, porque sabia que, se o otimismo viesse dele, do mais fragilizado, alcançaria a família. Foi o que aconteceu. Aquela frase singela atingiu a todos como um belo discurso pré-guerra, como nos filmes épicos, em que um homem inspira fileiras e fileiras de guerreiros com algumas poucas palavras.
- Vai! - Responderam, como soldados prestes a guerrear.
- Então já vou começar... O que tem que comprar na farmácia e no mercado, mãe?
A Sra. Santos fez uma lista generosa para Greta, com alguns palpites do Sr. Santos, já que ele ficou encarregado de cozinhar naquele período de incertezas.
- Ah! Não se esqueça de pedir orientações na farmácia sobre os cuidados com o seu irmão – completou a mãe.
- Pode deixar!
Greta entrou no carro, colocou uma música para tocar – “Skyfall”, de Adele – e seguiu seu caminho pelas ruas desertas.
- Parece um apocalipse zumbi – pensou alto.
“Deixe que o céu caia/Enquanto ele se desfaz/Nós continuamos de pé/Juntos/Na queda do céu” dizia a música.
Não foi nada difícil estacionar no setor comercial em que estava. Havia várias opções de vagas, e não, somente algumas sobrando, como de costume.
Greta era a única cliente na farmácia. Estavam todos de máscara, o que fez ela se sentir estranha por não estar usando uma. Era como se estivesse de regata no inverno, totalmente fora da moda da estação.
Utilizou uma caneta emprestada para sinalizar a compra de todos os itens da lista de medicamentos e utensílios de higiene, além de anotar as recomendações para Gregório.
Foi andando até o supermercado, no mesmo centro comercial.
- Ainda bem que comprei a máscara! Estão todos usando...
As poucas pessoas andando pelo estacionamento e pelos corredores do mercado estavam somente com os olhos à mostra, assim como ela, todos iguais. Aquela igualdade, o tecido sintético branco nos rostos, causou uma epifania em Greta. Percebeu o óbvio, que parece, muitas vezes, o mais raro dos teoremas: a noção de que todos são da mesma espécie, todos formam a humanidade, um grupo amplo, mas que não deixa de ser um grupo, com mais características comuns do que diferentes.
Greta começou a chorar subitamente, em meio às cebolas e abobrinhas, no pico do seu devaneio existencial. A empatia tomou conta dela. Não somente saiu de casa, como do seu mundo, da sua realidade, ao ir às compras. O homem escolhendo um pé de alface, a mulher higienizando o chão, todos pareciam ser um só, partilhando a palidez na boca ao invés de um sorriso, de uma expressão.
Quando chegou em casa e a sua mãe abriu um sorriso de agradecimento pelo cumprimento de suas tarefas foi grata como nunca antes.
- Eu assumo daqui, Greta. Vou guardar as compras e começar a preparar o almoço.
- OK!
Foi custoso para o Sr. Santos abrir mão de alguns minutos a mais de trabalho. Contudo, seu grande senso de responsabilidade para com a família o ajudou a retirar as compras das sacolas e planejar o almoço.
Ele sabe muito bem como cozinhar. Foi, por muito tempo, o irmão mais velho que age como pai e mãe ao ajudar na criação dos mais novos. Por isso, aprendeu de tudo com os seus pais.
Assadeira com frango e batatas no forno. Panelas no fogo. Alho, sal, óleo e arroz. Cebola, sal, pimenta-do-reino, vegetais picados e salsinha. Alface, tomate picado, torradinhas feitas na hora, azeite e sal.
Em poucas horas estava tudo pronto e todos, exceto Gregório, partilhavam a refeição na mesa. Estavam incomodados com aquilo. Como, no dia-a-dia, não almoçam juntos, não têm o costume de se sentar à mesa assim. No entanto, ao se reunirem, a cadeira vazia reservada para o filho – ainda por cima a cadeira de banho de Sol dele- era algo extremamente incômodo. Os fazia se sentirem incompletos.
Conforme foram conversando, a atmosfera foi se tornando mais leve. Sr. Santos não percebeu, durante o preparo do almoço, que cozinhar faz muito bem a ele. Conseguiu algo muito raro: um momento consigo, focado no presente que não era o trabalho. Os elogios das duas paixões da sua vida, sua esposa e sua filha o despertaram para isso.
- Obrigado! Fico muito feliz em vê-las felizes! Quero fazer isso mais vezes. Não sabia que era tão importante para vocês e, muito menos, para mim. Ainda bem que o Gregório – doeu falar nele sem sua presença – sugeriu isso.
- Estou ansiosa pelo jantar! – Greta “dissolveu o pesar no ar”.
A Sra. Santos recolheu o prato de Gregório, lavou suas louças, recolheu o lixo do quarto dele e cuidou do filho.
- 38°, mãe!
- Que bom que abaixou, meu filho! – Comemorou. No meio da manhã havia chegado em 39°.
- Está vendo? Está tudo bem, mãe!
- Eu sei. É que mãe é mãe...
- Sim... – disse tossindo seco.
- Trate de descansar, está bom? Esquece aquele trabalho da faculdade. A professora vai entender.
- Já falei com ela, está tudo certo!
- Está bom então. Qualquer coisa me chame e não tranque a porta!
- Tudo bem, pode deixar!
Parecia que metade do peso do mundo havia saído das costas da Sra. Santos ao saber que o filho estava bem. A outra metade ia permanecer até que ele estivesse totalmente curado.
- Agora eu vou... – Pensou no que ia fazer.
O Sr. Santos cuidou da louça, junto com Greta, que se ofereceu para ajudar, o que era raro. Além disso. A Sra. Santos limpou toda a casa no dia anterior. Não havia o que fazer. Sua filha ficaria muito feliz se fosse ela, adorava tempo livre. Ela não. Desconhecia o que era cuidar de si mesma. “Tirar” um tempo para si. Vivia para os outros e pelos outros.
- Nem pensar! – Disse Greta ao ouvi-la murmurar. A senhora vai se cuidar hoje, vai descansar. Fala do papai, mas é a que mais trabalha. Viu como ele ficou feliz em cozinhar? Todo mundo precisa de um tempo para os outros, aprendi isso hoje, mas precisa de um tempo para si também! Vamos assistir a uma comédia romântica? Eu sei que a senhora gosta.
- Mas seu pai está trabalhando na sala...
- Não seja por isso. Vou para o quarto. Você não vai escapar dessa, amor! – Disse risonho Sr. Santos.
Fazia tempo que Sra. Santos não ria tanto assim. Ela e Greta gargalharam do começo ao fim do filme. Além disso, se deliciaram com pipoca e refrigerante. Foi uma sessão de cinema perfeita.
Depois disso, Greta montou um verdadeiro salão de beleza na sala de estar. “Fez” as unhas e tratou os cabelos da mãe entre uma visita e outra dela ao quarto de Gregório para checar se ele estava bem. Greta queria doar todo o tempo daquele dia e, finalmente, sua mãe estava disposta a recebê-lo.
Gregório passou o dia tentando se distrair, o que era quase impossível. Sempre se lembrava de algo ruim. Quando não era o término do namoro...
- Não acredito que ela terminou comigo!
...Era o namoro, mais o Coronavírus...
- E ainda me passou essa doença, aquela filha da...
... Ou somente a Covid-19.
- Tenho que tomar cuidado para não contaminar ninguém!
- E se eu piorar e morrer? Ah não!
Nem sua tentativa de estudar, nem os “e-games” no computador, nem um jogo de tabuleiro, nem um livro, nem uma música, nada o fazia sossegar. Estava psicologicamente muito mal, pior do que seu próprio corpo, enfrentando uma doença nova. Começou a sentir desespero, vontade de chorar e gritar ao mesmo tempo. Se enrolou nas cobertas e ficou em posição fetal...
...Até que veio a noite.
Tentava se motivar quando sua mãe abriu a porta para ver como estava, porém, dessa vez, acompanhada.
- Podemos comer com você? – Perguntou a Sra. Santos.
- Claro! Mas onde?
- Ah, a gente senta aqui no chão e você fica na cama – sugeriu Greta.
Ao comer o delicioso hambúrguer de grão de bico que seu pai preparou especialmente para ele – por ser mais leve que carne – “junto” de todos, ele na cama e os outros no chão, compartilhando a refeição com ele, como nos tempos antigos, antes da internet, antes do garfo e da faca, antes de quase tudo, sentiu muito amor.
As lágrimas que salgavam um pouco mais o gesto de carinho do seu pai eram fruto da gratidão de Gregório por tudo o que tinha: a experiência de um namoro, mesmo que não tivesse mais uma namorada, uma professora compreensiva, que entendeu que não poderia fazer o trabalho da sua matéria, uma irmã responsável, um pai carinhoso e uma mãe cuja definição não sabia pôr em palavras.
Apesar da doença, ou melhor, por causa da doença e das consequências decorrentes dela na família Santos, dormiu bem.
Bem-vestido, agasalhado dessa vez. Bem-humorado, com ânimo para o dia seguinte. De bem com a vida.