Uma Página em Meu Diário

Terça feira, 20 de fevereiro de 2024.

Já disse aqui que nunca saí de Bom Jesus?

O dia acaba de amanhecer. Fiz meu café, bem forte. Pouco, pois vou passar o dia fora e detesto deixar café velho. Não bebo requentado, pelo menos não que eu saiba. Se me oferecem e percebo que é café velho, bebo, por educação, mas com nojo do gosto azedo que fica.

Arrumei mais um serviço: vou passar o dia plantando moirões no chão, esticando arame e consertando cerca velha queimada de fogo. Faltou aceiro e agora tem que resolver, melhor para mim. Fritei cinco pedaços de aipim que havia cozinhado ontem. Estava sem fome? Achei que sim, comi tudo. Já estou forrado, vai dar para aguentar até o almoço. Com

sorte, por lá encontro uma fruta, sei que tem manga, muita goiaba também. Comida eu já

sei que não dão, arrisco ficar com fome.

Já alimentei os patos, as galinhas, Tobias é certo que vem comigo. Troquei a água dos bichos e fechei o registro da caixa d’água. Aqui no alto, água só de madrugada e logo cedo o barulho dela saindo pelo ladrão cumpre a função despertador, me acordando bem cedo, antes do cantar do galo.

Daqui pro sítio, mais ou menos meia hora de bicicleta, o tempo tá bom, nublado, fresquinho, vai ser tranquilo para trabalhar. Sol quente é o que me mata. Quase sempre não encontro uma sombra para refrescar os cornos. Para mim, todo dia poderia ser nublado com sereno fininho no fim da tarde, poder assim dormir gostoso na minha cama,de cobertor, sem mosquito. A chuva espanta as muriçocas, detesto muriçoca. Esse bicho nem precisava existir. Um equívoco no Jardim do Éden, um invasor na arca de Noé, foi sim.

Não gostei do patrão. Subiu aqui gritando meu nome todo esbaforido com a inclinação da picada. Chegou tão interessado no meu serviço que nem se apresentou. Disse qual era o trabalho, como chegava lá e com quem iria trabalhar, ponto. Sujeito que exige, mas não se apresenta, desses conheço um monte. Aparecem e só querem a força dos meus braços, o tempo do meu dia, já estou acostumado.

Sou homem de trato simples, habituado com o adverso. Levo a vida vivendo dias iguais. Sempre um trabalho diferente, nunca no mesmo lugar, nunca com as mesmas pessoas, mas quase sempre o mesmo tipo de experiência: muito calor, muito peso,um

pouco de conversa fiada, um almoço acocorado em cima de uma pedra e a volta pra casa na minha barra forte azul que, com sorte, não quebra ou fura o pneu no meio do caminho.

Gosto mesmo é de voltar para minha casinha. Nasci aqui, era a casa de minha mãe, antes foi de minha avó. Conheço cada pedrinha, cada buraco. Aprendi a andar subindo a ladeira, seguindo a linha da picada, escalando o barranco, me aventurando no limite com a mata.

Aqui no alto, me sinto bem, encontro meu lugar, sou meu próprio dono, meu senhor. Cuido das minhas coisas, do meu roçado, faço minhas artes, penso na vida. Observo o verdume azulado dos contornos da serra, o desenho das pontas dos prédios da cidade distante e imagino o futuro, calculo o destino. Cercado de minhas galinhas, meus

dois patos, meu cãozinho Tobias. Com o rádio ligado, fico aguardando a visita de Marina, sonhando com o casamento.

Luiz RRosa
Enviado por Luiz RRosa em 22/02/2024
Reeditado em 27/02/2024
Código do texto: T8004849
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