NOITE DE TEATRO

“Os Actores são sacos de maneirismos e vaidades, uma colcha de retalhos que dificilmente chega a formar um Homem Completo”

Sir Alec Guiness in “Livro de Memórias”

“Já cheguei!”

Estava atrasado.O casaco, os documentos, as chaves.O beijo ao Cônjuge, tipo bela meio adormecida, festas aos gatos que o olharam com desdém, desconfiados de ele sair de casa àquela hora.

O Teatro.A princípio teria sido a atracção, a evasão da violência doméstica inconsciente e envergonhada que ele testemunhara .Mergulhar numa outra atmosfera.Mais bela.Mais leve…

Ele exagerou na resposta:

“Estou quase”.Elevador, escadas , rua, avenida,o Alberto encostado a um poste a digitar mensagens no telemóvel.

- Estás no aplicativo dos engates?Este homem é insaciável!Vamos?Temos uma hora,aliás menos, cinquenta minutos para lá chegar.

-Yesss…

Saíram do parque subterrâneo, quase em alta velocidade.Manuel rumou à A5 cuja entrada se fazia no outro extremo da cidade.

- Então que tal de “Sexo, Drogas e Rock and Roll”? – perguntou Alberto no lugar do morto para fazer conversa.

- Agora não.Ainda me engano na saída.

Kilómetros desabridos na auto estrada escura com um trânsito veloz e egoísta, e passagens a 40 na via verde.

- Será nesta saída?Vou virar! – sentenciou Manuel com o seu sentido de completa desorientação.

- Não é.E agora?Viemos ter a Bicesse e a Manique!Como é possível?

- Volta para trás!

-Aqui não posso.Não vês?Liga o GPS.

Depois tornou-se um hobby, um interesse, uma paixão.A representação.O espectáculo.Ele conheceu e colaborou adolescente com a Saint-Maurice, com Mrs Patacho e com o Benamor.Contracenou com o Ruy,o Lereno, a Schultz, a Elvira e a Josefina nos programas infantis e juvenis,no Teatro das Comédias e nos folhetins da Emissora.A Rey Colaço convidou-o para uma peça no Nacional.

“E a 200 metros, vire à direita…”

- A mulher é parva. E a rotunda?

- Diz que estamos a 45 minutos do destino…

-Mas faltam 15 minutos para aquela merda começar.

Um stress.Contornaram o Casino iluminado, foram ter à marginal, enfiaram pela avenida que dava acesso ao Mirita e avistaram o renovado e imponente edifício iluminado.

- Pois e agora lugar para estacionar?

- Ai, carvalho que me esqueci dos bilhetes…Não! Estão aqui!

Enfiaram por uma rua íngreme, só de um sentido, que desembocou numa praça onde se erguia um hotel desconhecido como uma imagem fantasma. .Desceram em passo de corrida curto até chegarem á porta do Auditório onde os últimos espectadores da fila davam entrada na sala.

Mal se sentaram as luzes diminuíram e o anúncio começou “Boa Noite…Bem Vindos…Por favor, desliguem os telemóveis…É proibido fotografar sem a autorização…

Num flash ele reviveu a grande decisão.Desistir.Obedecer ao desejo dos Pais.Cumprir.Afinal o Teatro não se podia considerar bem uma profissão, antes um estilo de vida.Tinham dito o Carlos e o Miguel futuro e actual Diretor de Companhias conceituadas.

O espectáculo começa.Um piano preto brilhante numa sala de estar, um ciclorama a todo o cumprimento, meio circular.

A Professora de Canto e o candidato a receber lições que é rejeitado ab initio mas que insiste argumenta , advoga e consegue que ela o aceite.Para o preparar para a cerimónia de homenagem e evocação, em memória da mãe falecida recentemente.

Mas o retrato visível sobre a estante rasa, entra lentamente na conversa.Ela também perdera o filho, o único, num episódio de terror numa discoteca da cidade, havia poucos meses.

Sim, os rapazes andaram na mesma academia, conheciam-se.O diálogo cerrado, contundente caminha para a revelação mais dolorosa.Ele despe a camisa e exibe a cicatriz que prova também ter estado lá e sido alvejado.

Luisa, complexa e cerebral, uma actriz de pedigree impecável formada na Escola Superior e na extinta Cornucópia e José, esbelto, emagrecido, emotivo, intuitivo e colossal pegam no admirável e excelente texto de um autor espanhol e conquistam e dominam a plateia inteira, logo passados dez minutos do início.

O drama atinge um nível inexcedível, distinto e raro.Ao longo de uma hora e meia, o sentimento, a raiva, o desespero e o amor divinamente expressos.

As palavras atravessam o espaço e fustigam.

Uma beleza indescritível, inimaginável e inaudita.Um extâse.

As personagens finalmente cedem e abraçam-se.A Canção linda e interpretada pelo dois fs remata.

_ Sublime.Uma obra prima!

O publico não espera, levanta-se em histeria colectiva e aplaude num frenesim descontrolado, os actores vêem oito vezes agradecer no meio de gritos e de” bravos” num triunfo imenso.

Com o coração a bater, as pessoas saiem para a rua desaforadas.

Um grupo de mulheres mete conversa com eles espontaneamente, enlevadas no meio da praça.Nunca lhes tinha acontecido.

Eles fazem o caminho de regresso empolgados.Discutem os pormenores.

- Oxalá o José aprenda Inglês e alguém o veja e o leve daqui.Ele pode ser tão bom como o Banderas ou o Bardem.É um desperdício se ele acaba atolado neste lodo.

- Que remédio!Isto não é Futebol.Na melhor das hipóteses consegue ser protagonista de telenovela a contracenar com uma dengosa qualquer que não lhe chega aos calcanhares.

- Vamos ao Galinheiro?

- A esta hora, quase não há opção.Prepara-te!Deve haver uma fila enorme para chegar ao balcão.

Manuel recorda o corte de raízes e mesmo assim a força desmedida que o fez gastar uma energia incalculável a encenar e produzir em contexto não profissional.Fizera Arthur Miller, Jean Giraudoux,David Lodge, Michel Houellebecq e escrevera e encenara uma coleção significativa de textos.Lidara com dezenas de criaturas pretensiosas, mal formadas e com um ego maior que um abcesso obsceno. Mas continuara sempre um espectador entusiástico que admirava as divas disponíveis no cenário: a Munoz, a Dolores, a Rey Monteiro, a loura e bela Norberto…

Alheio, ceou com o amigo na única grande superfície aberta fora de horas em que os capatazes numa azáfama encaminhavam os clientes para as manjedouras em forma de serpente e onde jovens angolanas de cabelo ripado pontuavam como acompanhantes de homens de negócios, seus conterrâneos mais velhos, escuros e deformados com os excessos de bebida e comida em terras lusitanas.

Ele deixou Alberto perto de casa, rumou ao lar, perdido, a pensar, em tudo aquilo.

Na sua mais ou menos ligação ao Teatro durante toda a vida vira as criaturas mais ignóbeis e medíocres a utilizar esse seu aspecto apenas para tentar diminui-lo, não o levar a sério profissionalmente com uma censura velada que a distracção, o desvio o conduziriam fatalmente a uma falta de foco.

Mas ele encolheu os ombros com desprezo.

“ Porcos.Coitados!”.

Nessa noite, o espectáculo arremessara com toda a fealdade e inveja para bem longe..Ele rejubilou com a oportunidade que lhe fora dada. Como mero e afortunado espectador.

Entrou no apartamento aquecido e gozou todo o conforto que tinha a sorte de aceder.Pegou no telemóvel, seleccionou o cartaz da peça e enviou mensagens a recomendá-lo aos amigos: ao ex parceiro no teatro, ao J que estava há meses no Brasil sem poder ver nada a não ser saracoteios e sambas e à sua querida e amiga C. que vociferaria:”Mas chefinho, os bilhetes já estão esgotados até ao último dia!”.

Apagou as luzes da sala, ligou a televisão sem som e apercebeu-se que tinha os olhos vermelhos.De humilde felicidade.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 22/02/2024
Código do texto: T8004571
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.