A quaresma, o Pe. Barbosa, dona Salomé e seu pão de coco
Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza, CE, 20 de fevereiro de 2024
Década de 1956, eu tinha apenas doze anos de idade, frequentava a Igreja do Cristo Rei, na Aldeota, Fortaleza. Fui por algum tempo, Congregado Mariano dessa Igreja, sob o comando do Padre Barbosa, homem enérgico, mas extraordinário orador, segundo o conceito que eu detinha, naquela idade, sobre ser orador. Ficávamos boquiabertos quando ele estava a desenvolver qualquer tema, principalmente religioso.
Certo sábado, dia de nossas reuniões da Congregação, após o carnaval, assunto que não dominávamos, pela nossa pouca idade, Pe. Barbosa nos falou sobre essa festa profana e a necessidade de sermos purificados. O tema daquela tarde foi sobre a “Quaresma”. Eloquente como sempre, explicou que estávamos no período dos 40 dias em que os católicos se preparam para a Páscoa, o grande acontecimento da Igreja Católica, que celebra a ressureição de Jesus Cristo, ocorrida três dias após sua crucificação. É o período no qual os cristãos se dedicam à reflexão e à conversão espiritual, orando e se penitenciando para lembrar os dias de Jesus no deserto, e os sofrimentos que suportou na cruz.
O padre continuou sua pregação de modo fervoroso, deixando-nos extasiados e contritos, sem saber se estávamos em pecado, por não entender aquele recado. Não tínhamos o direito a qualquer pergunta, nem ele nos perguntava se estávamos entendendo. A reunião terminou e fomos para as nossas casas, confusos.
Chegando em casa, sabia que não podia confrontar o meu pai sobre o assunto daquela tarde. Ele era católico, ou se dizia, mas não praticava. Eu já havia percebido que todas as noites, antes de dormir, sentado em sua rede, luz apagada, orava silenciosamente.
No domingo pela manhã, perguntei-lhe sobre Semana Santa, Páscoa, Quaresma, sem resposta. Nossa conversa foi cortada pelo convite de irmos tomar o café da manhã. Dona Salomé nos trouxe pão de coco para essa ocasião, falou meu pai. Recordei que já há alguns anos ela, no Domingo de Páscoa, sempre comparecia à nossa casa, trazendo como presente dois ou três pães de coco para a nossa família. O café da manhã tornava-se mais alegre quando ela chegava. Seu comportamento sereno trazia carinho para todos nós, principalmente para as crianças, que recebiam dela, balas de coco e pé de moleque, que ela própria fazia. Sua permanência em nossa casa era de apenas dois dias, depois retornava ao seu sertão, onde dizia morar.
Aquela tradição de comer pão de coco na Quaresma, sempre no sábado e domingo me intrigava, mas nunca tive, até aquela data, a curiosidade de perguntar sobre esse ritual. Naquele ano, depois de ouvir a palestra do Pe. Barbosa, no salão da congregação, fiquei mais intrigado, criei coragem e fui logo perguntando para aquela senhora sentada à mesa, ao meu lado, sobre o pão de coco no domingo de Páscoa. Menos prolixa que o padre, ela respondeu:
─ O pão representa a Santa Ceia, quando Jesus dividiu o pão entre os apóstolos e, segundo a fé católica, esse alimento se transforma no próprio corpo de Cristo durante a celebração eucarística. No Ceará, no domingo de Páscoa, as famílias pobres fabricavam o seu próprio pão, sovando a massa com leite de coco e adicionado um pouco de suas raspas, dando-lhe sabor especial.
Prosseguindo sua explicação, ela contou que o pão de coco feito em casa levava os seguintes ingredientes: leite de vaca, leite de coco, ovo, açúcar, raspa de coco, sal e farinha de trigo, colocada por último, bem devagar. Mistura-se tudo, bem misturado, em uma panela, ou tigela. Depois disso, abre-se a massa em cima da mesa com as mãos, batendo por dez minutos. Feito isso cobre a massa com um pano limpo, até ela crescer. Então coloca-se no forno – ela usava fogão a lenha – e deixa dourar. Retira-se do forno, deixa esfriar e está pronta para comer. Bati palmas e ela sorriu, dizendo:
─ Não é para comer muito, pode fazer mal.
Balancei a cabeça, concordando. Ela ficou satisfeita, acho, que por ter uma criança dando-lhe atenção e interessando-se pelas suas explicações. Era uma pessoa humilde, caridosa e temente a Deus, muito religiosa. Levantou-se, foi até o quarto, na volta entregou a todos que estava tomando café, um santinho com a figura de Jesus Cristo, com bonita veste e o coração exposto, bem no centro do peito, e isso deixou-me bastante agradecido e feliz.
No outro dia, já segunda-feira, voltou para a sua cidade e, infelizmente, nunca mais a vi. Só agora, na Páscoa deste ano, é que me veio à lembrança, o rosto daquela mulher simples, simpática, verdadeira, que enchia nossa casa de alegria e amor. Um ser iluminado. Que ela esteja em um bom lugar, ao lado dos bons, e de Deus.