O Pecado Toma Café
O Pecado Toma Café
...e se senta à minha frente. Prego meus olhos nela. Velho-moço, com sons em volta de mim, canções em cujas paredes reverberam poemas, o átrio dourado por pequenas histórias, sou contista. Avesso a girândolas literárias. Confetes e serpentinas rotas pelo tempo. Não me dou a arroubos narcisistas. Estupidez! Que apareça a obra, jamais o autor. Tenho-me por desconhecido, que os outros também me tenham. Lido em inglês e espanhol, meu editor mostras os dentes, satisfeito com os lucros que lhe proporciono. Cobra-me um romance. Digo-lhe sou de curtos períodos; se posso emoldurar texto em segundos, por que enfeiá-lo em horas? Hold on, peço-lhe. Ela cruza as pernas, duas coxas bem nutridas, um rosto de Louvre, corpo de vinte e seis anos, pés de tez morena bem desenhados, de se massagear com beijos. Peço à garçonete um macchiato, atmosfera recendendo a café e livros. Ela lê um livro. Muda as páginas lentamente, acariciando-as como se acaricia o corpo do amado. Olhos de terra molhando as letras com uma avidez ensandecida. Macchiato ressona junto a mim. Me olha com cenho franzido. Vais-me beber ou me ignorar?, as mãos na cintura. Não consigo desolhá-la. Três meses sem falar com Ennio. Ennio é o meu editor. Ligou pra mim, eufórico: tenho uma proposta das arábias em mãos! Uma emissora quer comprar um conto teu pra fazer um caso especial, nível de “roliúde”! Tua cereja no bolo. Histrionismo inútil. Mando o contrato por email? Não!, berrei. Nada com essa emissora! Me conheces! Ouço um soco na mesa, impropérios. Arre! Esse teu radicalismo vai te prejudicar. Anarquista! Como alguém recusa uma proposta dessas, bufa do outro lado. Nunca o fui. Anarquista, comunista, socialista, espiritualista, candomblecista, mijo nisso tudo. Garçonete chega. O senhor não tomou as duas xícaras. Sabe que vai pagar, né? Uma fileira de dentes brancos e perfeitos apareceu, num rosto redondo e bonito e preto. Foi rápido. Pedi outra xícara. Voltei a olhar aquelas pernas absurdamente lindas. Teu filho é a tua cara, disse-me meu ex-cunhado. Bonitão que nem tu, grandão que nem tu, mas muito rebelde. Dando dor de cabeça à mana. Inteligentíssimo, mas não quer muita coisa com estudo, não. Fala com ele. Nem tentei. Ele me odiava. Psicóloga querendo falar comigo e a mãe. Não acreditava naquilo. Tive minhas neuras e as curei sozinho, levando lapadas da vida. Minha terapia era uma noitada dentro de mulheres estonteantes e sôfregas. Sou um misógino e machista assumido. Tenho-as por terapia. Ennio me proibiu de dar entrevista, iria destruir minha carreira de escritor. Nem precisava, odeio entrevistas. Só servem pra massagear ego de escritores medíocres, nhatos mentais. Com ironia e sede de cascavel, os críticos me chamavam de bicho-do-mato, esquisito. Tabaréu. Gostava. Adrede, faltava aos lançamentos de meus livros. Ennio puto. Receber prêmio? Ennio ia. Escalava os montes e ia lapidando estradas vicinais no redemoinho existencial, junto aos veios dos rios empestados de piranhas sociais.
Ela descruzou as pernas. Ôpa, o que era aquilo? Ela estava abrindo as pernas, lentamente. Movimentos estudados. Olhos enfiados nos livros, passou a língua vermelha nos lábios sem batom, abrindo as pernas feito se abre o vestido da amante arfante. O que era aquela menina, quem era aquela menina... Filete de suor descendo pelo rosto, absurdamente excitado, procurei a garçonete pedindo socorro, cadê ela? Engoli seco, tentei beber um gole de café... Frio! Três xícaras frias. 58 anos e passando vexame. Olhei-a. Aquilo era um riso? Estava com as pernas totalmente abertas. Levantei-me, pedi a conta num desespero de quem comete o primeiro roubo. Ela fecha o livro e o levanta, discretamente. Era um livro meu! O primeiro livro. Vendas esgotadas. Como nos últimos acordes do Bolero de Ravel, paguei a conta e, desavergonhadamente, sorri-lhe de volta. Todo suado -apesar do ar-condicionado-, fui escrevendo um poema e um conto no corpo e nas pernas daquele pecado que tomava café numa livraria zona Norte, apinhada de burgueses.