O ANJO NAS GARRAS DO DEMÔNIO
Angel acordou naquele dia na maior fissura. Até as três da madrugada já havia fumado o fino, pedra e até encarreirado uma farinha maravilhosa no sinistro beco da rua doze, o famoso "beco da felicidade". Tudo, graças aos brincos e pingente de ouro da sua mãe. Ela nem ia dar falta, haviam tantas joias nas caixinhas que quanto mais ele pegava mais elas pareciam se multiplicar. Não pestanejou e fez a limpa.
Seu quarto, como sempre estava um caos, maricas por todos os cantos, um mal cheiro horrível que somente ele suportava. Havia dias que não tomava um banho, que não fazia qualquer tipo de higiene pessoal.
Dona Sueli ainda tentava algum contato com o filho na esperança de que suas preces, seus valiosos dízimos e, sobretudo, a corrente milagrosa de Israel amparada pelo fervor do pastor Jored e das mais devotadas irmãs da igreja Batista surtissem algum efeito. Somente o sangue de Jesus tinha o poder suficiente para quebrar a maldição que abatera sobre a família. Acreditava piamente que o demônio da destruição seria expulso do seu lar em breve.
Porém, na residência, nem todos tinham as mesmas expectativas. Américo, o pai, juiz de direito prestes a se aposentar, e os outros irmãos o desprezavam. Angel era um caso perdido. Após tantas tentativas de ajuda...viagens ao exterior, veículo novo, clínicas de recuperação caríssimas das quais fugira desprezando todo o esforço e sofrimento paterno, todos estavam desiludidos. Nada havia surtido efeito, toda aquela batalha se revelara infrutífera. O forte magnetismo das ruas falava mais alto, atraindo-o como uma presa indefesa caminha ao encontro do predador cruel e sanguinário.
Angel abandonara tudo na vida, a faculdade, a namorada, o emprego numa multinacional famosa e até o violão que amava tanto. Não morava de vez nas ruas porque sua mãe o buscava nas madrugadas pelas vielas mais sórdidas da cidade. Dona Sueli se indispunha com o marido e os filhos para peregrinar perigosamente pelo hipercentro da cidade em busca do rebento querido, ela o havia trazido ao mundo, cabia a ela resgatá-lo do inferno. Como o esposo e os irmãos não conseguiam compreender isso? A família desconhecia, mas o rapaz chegara a cometer pequenos furtos no comércio do centro da cidade. Nunca sentira tanta adrenalina correr nas veias; também nunca sentira tanta vergonha. Pelo ao menos jamais apanhara da polícia, afinal quem é louco de mexer com filho de juiz!
Naquele dia Angel estava excitado de forma anormal. Que se f... todos! Pensava alto e logo um palavrão estrondou pela casa afora. Os parentes não ouviram. Todos já haviam saído para cuidar dos seus misteres. A larica estava demais. Invadiu a cozinha pondo para correr a empregada Joana toda espavorida. Deixou a porta do freezer aberto de propósito ao sair mastigando com voracidade um sanduíche de presunto que a mãe havia preparado para ele. Começou a quebrar os objetos na estante do quarto do irmão mais velho. "Aquele idiota, só porque está se formando em Direito se acha melhor do que todo mundo! Que se dane este puto!"
Enquanto isso Joana, escondida estrategicamente no lavabo, discava trêmula para dona Sueli.
Angel voltou para o quarto trancou a porta. Retirou um embrulho feito com folhas de revista e fita adesiva debaixo do colchão. Um largo sorriso se desenhou no seu rosto quando abriu o pacote e pode sentir o cheiro “perfumado” do “pó mágico”. Nem se lembrou de que não possuía nem um níquel para pagar aquela carga enorme. As dívidas e as constantes ameaças de morte do pessoal do beco não lhe amedrontavam há muito. Como os demais problemas que se acumulavam, resolveria aquela questão depois, ou melhor, deixaria, como sempre deixara, que tudo se resolvesse espontaneamente.
Quarenta minutos após a chamada dona Sueli chegou, chorando, tentando disfarçar as lágrimas como sempre fazia diante da empregada. Sem dizer nenhuma palavra bateu gentilmente na porta do quarto e ouviu mais uma obscenidade do filho. Ficou conjecturando: "Melhor deixá-lo quieto no quarto. Ainda bem que ele está aqui! Tá melhorando graças a corrente poderosa! Meu coração tá por um fio! Meu Senhor, só de pensar no que os marginais podem faze com meu filho nas ruas meu coração se aperta tanto!" Aliviada, voltou para o trabalho, uma loja de acessórios femininos, de grife, no Shopping.
Quando a família chegou à noite, estranharam o fato de que Angel ainda estivesse trancado no quarto e não nas ruas como sempre acontecia. Joana disse que havia mais de três horas que não se ouvia nenhum barulho no cômodo. Não respondia aos chamados. Após muito tempo, e muitas confabulações, arrombaram a porta e encontraram o rapaz prostrado ao lado da cama, já sem vida graças a mais uma overdose.