Beijo de borboleta
Ela saía toda tarde de vestido preto ou vermelho, simples; cabelos negros soltos e um andar despreocupado. Eu ficava na janela olhando até que aquela beleza genuína, que perfumava o meu dia, desaparecesse do olhar, cruzasse a esquina. À noite eu queria estar em casa, então tentava chegar da delegacia mais cedo para ficar na janela de frente para o apartamento dela.
O fato de o apartamento ser de frente para o meu foi uma espécie de sinal dos deuses. Ela fechava a janela do quarto sempre às 10h30 da noite. Eu ficava debruçado na janela de peito nu, mostrando o físico conseguido com duras horas na academia. Sei que ela olhava na minha direção. Na última vez cruzamos os olhares e percebi um sorriso.
Nessas horas ficamos confiantes, o sorriso de uma mulher que é dirigido para a nossa alma é um remédio inebriante e bem eficaz para os males do nosso próprio mundo.
O porteiro me disse que ela era casada e que o marido quase não saía. Um fuzileiro naval acidentado, levara um tiro no quadril disparado pela arma de outro fuzileiro.
— Uma desgraça! Cara bonitão, mulher gostosa e não pode fazer nada, dá até para lembrar do velho Nelson Rodrigues em uma hora dessas, não é, seu polícia?! — disse o porteiro... — Meia dúzia de marmanjo cobiça a mulher — continuou a falar o porteiro olhando para mim de forma marota, como se soubesse o que eu pensava: O homem na cadeira de rodas e eu cobiçando a mulher dele.
Alguns dias se passaram naquele ritual. Eu na janela, pela manhã, via aquela mulher passar. Meu coração quase saía pela boca... Já não fazia nada certo na delegacia, queria ir para casa e esperar a hora que ela fechava a janela.
Delegado falou para mim:
— Nelson, você está com alguma doidiça na cabeça?
Doidiça era a gíria para mulher lá na delegacia.
— Eu, nada, chega, já não me chega as duas ex, doutor?
Naquele dia, 2 de setembro, ela bateu no meu apartamento. Quando olhei pelo olho mágico senti um frenesi, quase fiquei sem ar; um gosto amargo desceu pela minha boca e a força do desejo foi maior que o meu instinto racional.
Abri a porta e ela me beijou com força. Seus lábios se juntaram aos meus que quase senti a boca partir. Ela me empurrou para o sofá velho da sala e pulou em cima de mim, retirou o vestido e a minha camisa. Quase nem senti sua mão retirando o resto da minha roupa, arrancando a calcinha negra e deixando a pele branca totalmente à mostra; seios encostando na minha face e retirando o meu ar. As pernas mexendo sobre as minhas. Senti que não conseguiria me segurar.
— Qual o seu nome? — perguntei enquanto ela colocava a roupa.
— Ângela — disse com um sorriso frágil.
— Me desculpe. Fiquei apressado e estraguei tudo¬.Ela fez um gesto com a mão e disse que haveria outras oportunidades.
Fiquei anestesiado uns dois dias e pensando como o corpo controla a nossa cabeça... Queria tanto aquele momento, que ele me escapou.
O ritual recomeçou... Um dia desci para falar com ela, mas fez que não me conhecia. Na semana seguinte me deixou um bilhete debaixo da porta: Eu te procuro.
Fiquei esperando, remoendo uma paixão imensa com planos. Azar do aleijado. Eu queria aquela mulher. Sentia o gosto dela em cada dia que passava e todo resto perdeu o valor. Comecei a fazer planos... Os dias passaram, e, dois meses completos, não aguentei e parei Ângela na rua novamente. Ela ouviu minhas lamúrias, mas apenas me respondeu com a mesma frase que me havia escrito o bilhete meses atrás:
— Já disse, eu te procuro.
Fiquei esperando, e ela continuou no ritual. Uma terça-feira de agosto ela voltou ao meu apartamento, controlei-me, comprei um vinho, bebemos, depois a levei para a cama. Ela ficou parada, deixou que a tocasse nos lugares mais íntimos. Parei de me concentrar e fui invadido pelo desejo louco.
Procurei cada detalhe daquele corpo; conheci cada curva com minhas mãos; acariciei os seios, a pele pura. Bebia o gosto mais proibido, até que a senti gritar.
— Você volta? — perguntei.
— Sim, eu te procuro.
— Ângela, eu amo você.
Ela parou na porta ao escutar a insanidade que saiu da minha boca em um furacão de palavras, voltou e me beijou no rosto, acariciou a minha face e disse:
— Quero que veja uma coisa.
Fomos até a minha janela. De lá o marido acenou com a mão esquerda.
Olhei para Ângela sem saber o que aquilo tudo significava, e ela me falou com a voz mansa.
— É ele que me faz vir aqui. Eu amo aquele homem. Ele que acha que ainda tenho questões no corpo a resolver. Esqueça-me.
— Como posso esquecer-me de você? — perguntei.
Ela deu de ombros.
— A gente sempre arruma uma forma de viver com nossos demônios — disse, deixando o meu apartamento.
Lembro-me da primeira vez que a vi linda e confiante, depois repito em minha cabeça cada detalhe de nossa primeira e de nossa segunda noite, suspiro em uma dor profunda e sem remédio, pois é ela que se engana, nem todos conseguem viver com seus demônios. Na vida, o amor às vezes pode ser um simples beijo de borboleta.