Sem pressa para viver
O bem arrumado quarto, simples, mas com a elegância do despojamento de objetos inúteis, mostrava que o seu dono era possuidor de capacidades desenvolvidas.
Seu dono? Quem conhecia realmente ele? Na velha e conservada casa os cômodos eram muitos. Sobressaiam, no entanto, obras de arte na sala principal. Quem olhasse o proprietário não diria que tinha tantos quadros de pintores famosos. Dois Iberê Camargo, da fase carretéis, um Volpi, três Ianelli e fica cansativo enunciar o resto.
Como conseguira juntar esta riqueza, poucos sabiam dizer. Mas a prova lá estava, cuidadosamente limpa e pendurada nas paredes.
- Sujeito estranho!
- Mas é um velho morador. Todos o conhecem.
- Tem idéia do que ele faz, Norberto?
- Nenhuma. Quase todo mundo que mora neste lugar desconhece o sujeito. Que é rico, não há dúvida.
- Mas não conhecem o homem? Há quanto tempo mora aqui, Célio?
- Há oito anos, aproximadamente.
- E durante este tempo todo vocês desconhecem o homem? É muita falta de interesse.
- Engano seu. O homem é misterioso sim, mas gosta de muitas atividades diferentes. Imagina que ele dá aulas de matemática, sem cobrar um centavo a esta criançada das redondezas.
- Ora, deve ser algum professor aposentado.
- Professor aposentado como? Mora em casa grande, veste-se com capricho, embora sem requintes. Não, ele não é um professor.
- Vive como, então?
- Lá eu sei! A única coisa que sabemos é que todos os guris que estudam com ele sabem matemática muito bem. O homem tem seus dotes, ninguém duvida disto.
Enquanto estavam conversando e bebendo um chope preto, especialidade de um bar conhecido e bem freqüentado do local, de onde poderia ser avistado o portão da casa abriu-se. Seu morador ganhou a rua. Não tinha tipo estranho nenhum, era um cidadão comum que passaria por um tipo bastante comum. Calças confortáveis de brim fino, camisa xadrez e um sapato no estilo mocassim que deveria ser bastante confortável. Talvez já contasse com sessenta anos. Entrou num mercado e fez suas compras, invariavelmente as mesmas, durante anos. Uma receita digna de ser mencionada. Grãos de vários cereais, que vêm num pacote muito bem fechado. Ovos, pão integral, e legumes diversos. As maçãs e bananas tinham sido escolhidas com carinho. Os vinhos, todos tintos, eram de procedência chilena, hoje um país conhecido pela qualidade dos seus fermentados da uva.
Os dois curiosos, Norberto e Célio, haviam seguido o homem. Mal, muito mal mesmo, poderiam imaginar que desde que se levantaram das suas cadeiras, o já velho professor tinha-os percebido. Em outras épocas, esta era uma das suas especialidades. Tempos passados...
- O homem é vegetariano, Célio.
- Acaso você já viu vegetariano beber vinho tinto?
- Não sei. Não entendo patavina deste negócio.
- Eles não costumam beber, meu caro. Gostei deste mistério.
- A comida é fácil de ser preparada.
- Mas ele tem uma empregada que vai três vezes por semana na casa.
- Está dizendo que é ela que prepara tudo?
- Não, sei, ora! Pode ser que sim, pode ser que não!
- Eu é que não vou querer saber de detalhes. O homem tem uma aparência muito decidida, Célio.
Quem mora em casa, hoje em dia, é assim. Fica vigiado pelos vizinhos, quer queira, quer não. Já sabiam até a alimentação do homem, por sinal, muito sadia. Ele não comia as gemas do ovo. Colesterol puro serve apenas para entupir veias e artérias. Cuidava, fazia longo tempo, da saúde privilegiada. Quem pensasse que era um simples tipo comum, estava enganado e era mau observador.
Affonso, pelo menos era o nome que ele apresentava na carteira de identidade, vez por outra fazia uma curta viagem, quando comprava tintas a óleo e encomendava a um excelente carpinteiro chassis de madeiras velhas, que suportassem bem telas que vinham da Bélgica, em rolos.
A calma do aparente velho professor dava sempre lugar a um esmerado pintor, que costumava passar longo tempo no estrangeiro.
As crianças que tão afetuosamente dava aulas sem cobrar centavo, interessando-se somente pelo seu bom aprendizado, as curiosas criaturas que não puderam saber jamais sua origem, não poderiam imaginar nunca que aquele pacato homem, que aparentava ter todo o tempo do mundo sem preocupações que nos aborrecem dia-a-dia, era um dos maiores falsários de pinturas famosas.
Muitos Rembrandt que se encontram na casa de milionários norte-americanos, saíram daquela velha casa e de outra mais.
Os caçadores destes homens são implacáveis.
Eles acham muita graça. Não são apanhados, e quando isto ocorre, nunca há prova material.
Todos, sem exceção, não têm pressa para viver...