MULHERES

O quarto era minúsculo e absolutamente asqueroso. As paredes cheias de mofo e com a tinta descascada. Tinha um cheiro de poeira, suor e sêmen horrível. Na cama, quase quebrada e com um colchão totalmente estropiado, uma moça branca, faces de dor e visivelmente abatida, estava de quatro enquanto um homem fazia sexo com ela. Não transava com ela apenas, espancava suas nádegas no processo. Parou de repente:

“- Quer seu pagamento, não é?”

Foi até a calça que estava em uma cadeira na frente, pegou uma pedra de crack, tirou um pedaço, colocou cinza de cigarro do cinzeiro que estava em cima de uma cômoda velha, colocou na boca dela e queimou a droga com um isqueiro. Esta sugou sôfrega e avidamente. Depois segurou a fumaça o quanto pode. Ele tirou a camisinha:

“- Chupa!”

Ela obedeceu enquanto ele queimava o que havia sobrado da droga.

Saiu do quarto. O hall do hotel era um corredor que dava em uma escadaria estreita. Ao fim dela, depois da portaria, se descortinava um pedaço do inferno. Uma rua abarrotada de pessoas perambulando de um lado par o outro, gritando, com as roupas imundas, muitas usando drogas. No final dela duas viaturas da Guarda Civil Metropolitana. Na frente, em uma esquina, um posto da polícia militar. Para todos os lados se viam pessoas com mantas por sobre a cabeça, outras com cobertores ou lonas no chão, cheias de quinquilharias para vender e pessoas queimando canos de alumínio tentando obter qualquer último vestígio de droga que pudesse estar neles. Ficou um bom tempo comtemplando aquele quadro dantesco e ouvindo a estranha sinfonia que aquela selva produzia:

“- Quem tem três reais para vender?”

“- Camiseta para treta eu tenho! Camiseta para treta eu tenho!”

“- Quem tem isqueiro meia vida para vender?

“- Cigarreiro! Cigarreiro!”

“- Quem tem RG para fazer treta?”

“- Quem chamou o cigarreiro? Dez cigarros por um trago! Quem faz dez cigarros por um trago?”

“- Olha a da boa! Chegou a da boa! É a da óleo! Eu tenho a da óleo! É pânico!”

No centro da rua várias barracas estão instaladas. Em todas estão várias drogas espalhadas. Principalmente crack. Pedras enormes que eles cortam em pedaços menores para vender. Parou na mais movimentada e comprou 5 de 10 reais. Foi até um dos botequinhos do outro lado da rua e comprou dois corotes e dois maços de Eight. Atravessou as barracas e foi até a outra calçada onde pede um cachimbo emprestado e começa a usar. Logo se vê cercado por vários outros usuários que tentam tirar uma lasquinha. Uma mulata magra, de uns cinquenta anos, se aproxima:

“- E aí Marcos, me dá um birico?

Já entortando a boca e com dificuldades para falar:

“- Lógico Vera. Pega aqui.”

Lhe dá meia pedra. Vários outros estavam ao lado pedindo também:

“- Vamô para com essa irradiação. O cara não é frango não. Vêm Marcos, vamos sentar mais ali para frente. Aí só fuma eu e você. Porra meu! Quando for assim me procura. Esses caras sempre te depenam.”

Ficaram sentados no meio-fio por horas. Eram conhecidos de longa data. Desde que a cracolândia se estendia por toda a Luz. Uma noite na rua do Triunfo, numa madrugada gelada, ele estava sentado sem dinheiro na porta de um comércio. Ela sem falar nada simplesmente passou e lhe deu um trago considerável. Ao longo dos anos tem trocado gentilezas. Uma vez ele pagou um pernoite para ela. Vera tinha lhe protegido de ser roubado várias vezes. Conversavam sempre.

“- Marco, você não tem medo que o pessoal do seu serviço te veja por aqui?”

“- Já tive. Hoje não importa.”

“- Perdeu o emprego?”

“- Não, mas vou perder.”

“- O caralho! Tá parado para você! Vai embora!”

“- Não quero, tenho dinheiro para fumar a noite inteira.”

“- Só que você não vai fazer isso. Nós vamos fumar mais esta pedra. Depois a gente vai até a praça em frente da estação, bebe um corote e você vai embora. Se não for assim, não falo mais com você!”

O gesto dela o surpreendeu. Aceitou mas por uma sensação de surpresa por que realmente queria. Depois que terminaram passaram por toda a rua. No final dela, na encruzilhada, ficava uma enorme multidão de usuários. Na esquina havia uma tenda da Secretária da Saúde. Vários GCM ficam ali apenas olhando o movimento dos pobre diabos. Na descida há uma viatura da Guarda Municipal. A praça fica em frente a estação João Mendes do trem. Sentaram lá e ficaram bebendo um tempo. Ao lado dois evangélicos conversavam com um grupo. Outro grupo também dividia um corotinho de pinga em outro banco. Um casal discutia e outros ficavam apenas ali sentados. Alguns visivelmente drogados, talvez apenas esperando melhorar um pouco. Tudo sobre os olhares atentos dos guardas que mantinham uma viatura em cada canto da praça. Além disso viaturas passavam pela avenida a todo momento. Ali era proibido usar drogas.

Muitas e muitas vezes ela já o tinha advertido que suas noitadas na Luz lhe causariam problemas. Mas neste dia ficaram umas duas horas bebendo e apenas conversando da vida, sem recriminações. Ela reclamava do seu companheiro que só queria se aproveitar dela. Ele lembrava que ela já se lamentava disso há dez anos e que pelos padrões modernos eles eram um casal que tinha dado certo. Ela começou a reclamar que não conseguia traficar porque o PCC pegou tudo e agora tinha muito biriqueiro. Mas a vida estava melhor, pois trabalhava metade do dia limpando as ruas por um projeto da prefeitura. Não pagava aluguel, morava em um albergue da prefeitura também e tomava café da manhã e almoçava de graça. Não tinha o que reclamar, até os dentes dela o Estado estava pagando. Ele comentou que tinha encontrado várias pessoas de outras "quebradas". Ela emputeceu:

“- Aqui virou o lixo de São Paulo. Todo mundo que apronta nos bairros vem para cá. Mesmo os africanos que ficam aqui estão fugidos da gente deles. Aí eles ficam aqui fazendo merda porque ninguém pode matar se não suja o pedaço. Tô falando Marcos, não pense que você está seguro aqui. A porra do lugar, com toda essa segurança, virou atração turística. Tudo que é serviço social ou organização religiosa vem para cá. Se dá tanta comida aqui que se não lavassem três ao dia seria um criador de ratos. A maior parte o pessoal joga fora.”

“- Lembra nossa época? Ficar esperando desde as seis da manhã para ganhar um pão com manteiga e um café com leite na Toca de Assis. Com muita sorte um banho.”

“- Lembro. Faz tempo. Porra amigo! Já passou da hora de você parar de vir aqui. Aproveita, vai embora que sua boca não está nem entortando mais.”

“- Mas eu estou muito bêbado.”

“- Melhor do que noiado! Ou do que ficar aqui e fumar todo o dinheiro que você tem. Vamos, eu vou com você até lá.”

Era uma cena curiosa. Ela vestida de gari, ele jeans e camisa. Os dois andando em zigue-zague até a estação. Antes dele entrar deu a ela R$50 e se abraçaram. Subiu no trem e se sentou deixando-se levar pelo estado de embriaguez em que estava. Foi até a estação final de Itapevi e voltou. Desceu na estação da Barra Funda e de lá pegou um trem até a Luz. Durante todo o trajeto lutou para não voltar para a cracolândia. Não conseguia sentir desejo de voltar para casa. Não conseguia sentir desejo de viver.

Quando desceu na estação reparou em uma moça negra com um bastão na mão. Era deficiente visual. Normalmente sempre havia um funcionário da CPTM para ajudar. Mas era horário de pico e não viu nenhum, todos provavelmente muito atarefados:

“- Quer uma ajuda moça?”

“- Você poderia me levar até um funcionário?”

“- Aqui está o caos. Não estou vendo nenhum. Posso te acompanhar até lá embaixo?”

Sentiu uma ligeira reação de repulsa

“- Olha, eu bebi hoje e o cheiro deve estar forte. Quer que procure alguém lá embaixo ou outra pessoa.”

“- Não. Não é nada que eu já não tenha sentido pior. Consegue andar em linha reta?”

“- Felizmente ainda sim. Dá para enganar quem olha de longe.”

“- Estou em dúvida... Você bebeu porque?”

“- Para esquecer.”

“- O que?”

“- Esqueci.”

“- Hahahahaha. Então tá tudo bem.”

Deu o braço para ele. Reparou admirado a maquiagem bem feita, inclusive com um batom vermelho marcante. Também estava muito perfumada. Sentiu mais nojo de si mesmo.

A plataforma estava completamente abarrotada e foi com dificuldade que desceram a escada rolante. Ela andava mais rápido do que ele, puxando o passo.

“- Eu sou cega, não sou de porcelana.”

“- Dá um boi. Você está me ajudando mais do que eu a você. É meio ridículo um bêbado tentando dar uma de cavalheiro ou bom samaritano?”

“- Você está se saindo bem.”

Quando chegaram na plataforma de baixo havia apenas dois funcionários tentando organizar a bagunça:

“- Olha, aqui também está com poucos funcionários e não tem nenhum dos moços do Posso Ajudar. Você vai para onde?”

“- Como estamos apressados, hein? Vou para Guaianazes.”

“- Eu vou para Ferraz. Nós temos que pegar o mesmo trem. Quer que eu te acompanhe até lá?”

“- Por favor. Isso me soa quase ensaiado.”

“- Não. Estou com sorte mesmo. Vamos ter que esperar bastante. Tem apenas uma escada rolante funcionando e está abarrotada de gente.”

“- Não vamos não. Me siga.”

Ela o foi conduzindo até um corredor onde um guarda controlava a passagem. No final dele havia um elevador guardado por outra funcionária.

“- Nossa! Não sabia que tinha elevador aqui.”

“- Tenho minhas vantagens.”

O elevador os levaram diretamente para onde parava o vagão especial para idosos e pessoas com mobilidade reduzida. O espaço também estava apinhado, tanto que ela não conseguiu lugar para sentar. Não pareceu se importar.

A viagem durou uma hora. Conversaram o tempo todo. Descobriram que já se conheciam, pois ele trabalhara anos em uma lanchonete na frente do GRAAC (centro de referência no tratamento do câncer infantil) onde ela fez tratamento durante muito tempo. Ela falou de como estava ansiosa, pois daqui a seis meses faria 18 anos e finalmente poderia morar sozinha. Que na verdade o que a empolgava não era sair do convívio da família, mas sim se mudar dos predinhos da Cidade Líder. O bairro todo é um imenso aglomerado de conjuntos habitacionais de apartamentos minúsculos onde todo mundo sabia da vida de todo mundo e a criminalidade impera. Trabalhava meio período em uma empresa de telemarketing, estudava a noite numa escola especial em Guaianazes. Durante a tarde fazia cursos e tratamentos. Falava de tudo em um tom alegre, absolutamente sem rancor. Deram muitas risadas.

Ela desceu em sua estação e ele prosseguiu viagem em outro trem. Desceu em Ferraz e foi até a pensão onde estava morando. Olhou para o aspecto impessoal do quarto, pegou o celular que deixara ali (para não ser achado):

“- Alô esposa...”

“- Pô, você vai pelo menos deixar eu começar a falar... Se você deixar... Porra, pode me escutar?! Quero me internar. Quero tentar de novo. Você me ajuda?”

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 12/02/2024
Reeditado em 28/09/2024
Código do texto: T7997381
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