É SEMPRE A MESMA COISA.

É manhã de terça-feira, dia nublado, pouco movimento na rua.

Despertei assustada com coração acelerado, é devido ao sonho das noites anteriores, nem sei se devo chamá-lo de sonho, tá mais para um pesadelo. O sonho é sempre do mesmo jeito, eu ainda pequena, oito para nove anos, mamãe está junta de mim, rodoviária do Tietê, as nossas malas, o ambiente, tudo direitinho no sonho, com uma única diferença de ser meus oito irmãos que acompanhavam nosso embarque. O ônibus viação São Geraldo destino Alagoas, parando, passageiros entrando, abraços de meus irmãos em mim. De repente, as fatídicas palavras do motorista, "A menina vai ter que pagar a passagem, já tem idade." Depois, as aterrorizantes palavras de mamãe, "A Marcilene fica com os irmãos, não tenho dinheiro para pagar." Depois, o meu choro de desespero, não acreditando que mamãe me deixaria com meus irmãos. O sonho termina com o ônibus partindo, o meu coração fora do peito, caído no chão aos pedaços...

Eu nunca revelei esses sonhos para ninguém, nem mesmo para meu esposo e filha. Eu sei que preciso de ajuda, de um psicólogo talvez, mas como, sem plano de saúde, dependente do SUS, não sei o que fazer.

Me levanto, abro a porta da sacada, fico por um tempo parada do lado de dentro observando a calmaria. Me viro lentamente para esquerda, o meu reflexo no espelho assusta, não gosto do que vejo, me detesto na maioria das vezes por ser como sou. O relógio na parede marca sete horas em ponto, eu pego o pente que minha filha deixou jogado sobre a cama, lentamente penteio os meus longos e embaraçados cabelos, outra das minhas angústias é não ter dinheiro para arrumar o cabelo. A casa está em silêncio agora, minha filha já saiu para escola, o meu esposo foi trabalhar. Lembro-me que tenho médico às onze horas da manhã, o que já me deixa irritada, o médico é em frente à rodoviária. Embora o meu desejo seja de ficar em casa, eu sei que não posso perder a consulta, afinal, foram seis meses esperando por um médico, quando eu tinha o plano de saúde do meu esposo era tudo mais fácil, agora, trabalhando em mercado, ficou tudo mais difícil para nós.

Mamãe já se levantou, como sempre, às seis da manhã, não sei o motivo de acordar tão cedo. O café já está pronto, posso sentir o seu aroma suave invadindo o quarto. Não demora e ela grita da parte de baixo da casa,

— Marcilene, vem tomar café.

Mamãe é irritante às vezes, parece que gosta de provocar, quer que eu acorde junto com as galinhas também.

— Estou terminando de me arrumar, calma.

Eu respondo em um berro, já sem paciência. Termino de arrumar o cabelo, que trabalheira é esse cabelo longo, todo dia a mesma coisa, só não o corto por causa do voto que fiz, de só cortar quando o processo que meu esposo moveu contra antiga empresa sair, sete anos esperando e nada, meu Deus, quando tudo isso vai terminar.

Troco de roupa, coloco um perfume e desço para cozinha. Mamãe está esperando, cara fechada como sempre, por certo irritadíssima por não ter conseguido receber sua aposentadoria no dia anterior, ainda mais sabendo que vou sair e somente depois retornar vou com ela receber.

— Benção mãe, bom dia.

Minha cara não é das melhores, a voz sai com irritação.

— Deus abençoe...

A resposta da mamãe vem no mesmo tom.

— Depois que eu retornar da consulta, levo a senhora pra receber, não me esqueci não...

— Vou ficar sem receber de novo Marcilene?

— Não começa mãe, por favor! Já falei pra senhora que vou levá-la para receber, dá para se acalmar... Que coisa, tenha mais paciência... Peça para o Carlos e a mulher dele te levar.

— Não começa Marcilene, já falei pra você parar com essa implicância com seu irmão, e até parece que você tem paciência né. E outra... Não quero conversar com aquela bandida da mulher dele.

— Mãe!... Por favor! Eu já não disse pra deixar pra lá.

Mamãe fecha o semblante, fica ainda mais irritada, não quer mais conversar, o que para mim é um alívio, prefiro assim, por mim ficaria o dia todo sem falar com ninguém.

Termino de tomar o café, mamãe já se levantou e foi cuidar do almoço. Escovo os dentes rapidamente, embora o ponto esteja perto, o horário já está em cima. Pego bolsa e carteira e celular, peço para mamãe buscar a Emily na escola caso eu não chegue a tempo, saio na carreira, com medo do ônibus já ter passado.

Rua sem movimento, casas fechadas, nenhum vizinho bisbilhotando, o que é raro nesse bairro, até estranho para dizer a verdade. Uma pena que daqui a pouco começa a bagunça, carros e motos, principalmente as motos. Não posso me esquecer dos vizinhos intrometidos, esses são os piores.

Ganho a avenida Do Galeão, o ponto é mais a frente, do lado da farmácia, ponto lotado novamente.

Felizmente não tem conhecidos para ficar conversando, hoje não estou para conversas. Paro, observo, cada um em seu canto, celulares nas mãos, terrível privilégio da modernidade, junta os que estão longe e afasta os de perto.

Não demora e o ônibus aponta na avenida, por sorte, é o articulado que vem do Laranjeiras. Me arrasto no meio do povo, espremendo aqui e ali, tomando a frente de um e outro até conseguir entrar. Vou direto para o meio do ônibus, o mais próximo possível da porta, procuro um canto qualquer, me sento, pego o celular na bolsa, o fone de ouvido. Nem me dei conta de quem se sentou ao meu lado. Vejo apenas de canto que é um homem, fica me comendo com os olhos, bando de safados, talvez querendo puxar conversa, não faço questão nem de cumprimentar.

Os pensamentos estão distantes, tumultuosos, como ondas bravias em alto mar. As lembranças distantes, do tempo de criança, de quando mamãe foi de São Paulo para Alagoas, eu tinha apenas sete anos, lembro-me do sonho... Os pensamentos são dissipados com a voz de uma mulher, nem me dei conta de que o homem que estava ao meu lado havia descido, o lugar foi ocupado por uma mulher, que já foi logo querendo puxar conversa.

— Olá, bom dia!

"É sério... Vou ter que responder." É o meu primeiro pensamento.

— Olá.

— Quem bom que veio o articulado hoje né, geralmente é o ônibus menor, odeio quando vem o menor, fica todo mundo espremido.

— Sim.

— Que ver lotar é no horário de saída das escolas, menina que loucura, molecada bagunceira...

Deixo ela falar, aumento o som do celular no último, até ao ponto dos fones de ouvido tremerem. Olho para ela de canto de olho, ela agora é apenas um boneco, uma boca se mexendo sem parar. Finjo que estou ouvindo, aceno positivamente com a cabeça enquanto ela fala sem parar, meu Deus, o que fiz para merecer.

Acho que a mulher percebeu que não estou para conversar, a boca para de se mover, dou um meio sorriso forçado. Ela se levanta, vai descer no próximo ponto.

Uma multidão desce com ela, me levanto rapidamente e me sento na poltrona que é só um lugar antes que mais pessoas entrem e tomem o lugar. Assim, posso terminar a viagem sem ser incomodada.

Novamente os pensamentos se tumultuam. Devaneios, lembranças do sonho, da rodoviária do Tietê, eu, criança ainda, inocente, machucada. Mamãe estava de viagem para Alagoas, somos em nove irmãos, mas, apenas eu viajaria com mamãe, como sempre era todo ano, a minha passagem era de graça. Eu estava ansiosa, querendo que chegasse logo o ônibus, eu queria tanto fazer aquela viagem com mamãe, só nós duas no ônibus. A rodoviária lotada, uma das amigas de mamãe estava conosco, no sonho era os irmãos, na realidade, foi uma amiga de mamãe, fazendo companhia até sairmos. O meu coração bateu ainda mais acelerado quando o ônibus parou de frente para nós duas...

Saído do meu devaneio quando alguém me toca no ombro, meu Deus, o ônibus havia chegado na rodoviária, eu tinha que correr para não me atrasar para a consulta.

Eu saio apressadamente, não posso perder tempo, a tirania do relógio me consome, se não fosse o fato de ter que levar mamãe no banco para receber gastaria a tarde toda por aqui mesmo.

Ruas movimentadas, pessoas se trombando, enquanto nas esquinas, figuram os mesmos malandros de sempre, querendo uma oportunidade para roubar, seguro minha bolsa firme junto do braço enquanto subo a rua da matriz, o consultório do Dr. Clóvis não fica longe. Neurologista conceituado, o melhor da cidade, do estado eu diria.

É a segunda vez que retorno ao Dr. Clóvis desde que o Geraldo foi demitido da antiga empresa, quando então perdemos o plano de saúde, na minha última consulta, me descontrolei, foi uma choradeira na frente do médico, coitado, ficou desconcertado, falou para eu não me preocupar, passaria minha consulta no social, sem cobrar nada, o que não poderia acontecer era eu ficar sem os meus remédios.

Atravesso a praça do fórum velho, mais uma rua reta e estarei no consultório, que é de frente a rodoviária.

Enquanto caminho apressada, sou tomada por novos devaneios, pensamentos soltos, tumultuando tudo aqui dentro, Dr. Clóvis disse que minha cabeça vai acabar me matando qualquer hora dessas. Ele tem razão, a minha cabeça é o meu algoz, o Geraldo sempre reclama, não posso fazer nada, sou assim, acho que vou morrer assim. Fui criada praticamente sem pai, mamãe se separou de papai quando eu ainda era pequena. Tive que me virar de pequena, mamãe nunca que parava em casa, sempre de viagem para Alagoas, seis meses lá, seis aqui, ficávamos à própria sorte, cada um tendo que se virar como podia.

Rodoviária do Tietê, movimento intenso, malas aos montes, ônibus da companhia São Geraldo. Eu sempre acompanhava mamãe nas viagens, nunca, até aquele dia, havíamos nos separado. Papai morava com outra família em Alagoas, era raro vê-lo por lá. Dono Cleusa e o esposo, ambos amigos de muito tempo de mamãe estavam acompanhando. Eu, ansiosa para entrar no ônibus, três dias de viagens, era uma aventura que adorava fazer com mamãe. O ônibus chega, abraços e beijos, enquanto isso, o motorista guarda as malas dos passageiros, chegou a nossa vez, o motorista me encara, olha, pede a mamãe os meus documentos. "A menina já tem oito anos, senhora, ela também paga a passagem". Mamãe olha para amiga, para mim, eu sem entender nada, querendo subir logo no ônibus, quando escuto as palavras de mamãe. "Cleusa, eu não tenho dinheiro para pagar a passagem da Marcilene, vou deixar ela aí com vocês". Eu começo a chorar vendo o motorista arrancar minha mala novamente, lágrimas do fundo da alma, eu não conseguia acreditar naquilo ( até hoje não consigo), minha mãe teve a capacidade de me deixar para trás com, "estranhos", por assim dizer. Qualquer outra mãe do mundo cancelaria a viagem, emprestaria dinheiro para a passagem, sei lá, mas, com certeza não deixaria sua filha caçula a Deus dará.

Me desfaço do devaneio, já na porta do consultório, a secretária destravou a porta, entro, converso um pouco com ela, o médico estava atendendo, eu seria a próxima, se desse tudo certo, daria tempo de pegar a Emily na escola e levar mamãe para receber.

Chegou a minha vez de ser atendida, em silêncio entro na sala do médico. A consulta é demorada, como deveria ser toda consulta, atencioso, Dr. Clóvis me examina, tira pressão, faz os procedimentos habituais, ritualísticos até. Depois, pega a minha ficha, lê inteira, hábito estranho, porém, muito eficiente, se reitera no meu caso.

Depois de uma boa conversa ele passa a receita com os medicamentos, Dr. Clóvis disse que metade dos meus problemas é psicológico, que a qualquer hora minha cabeça vai me matar, concordo com ele. Falei para ele a respeito da complexidade que a minha relação com a família, minha mãe e meus oito irmãos. Do primeiro casamento, mamãe teve cinco filhos, do segundo, quatro. Sou a raspa do tacho, a caçula por assim dizer. O primeiro esposo da mãe faleceu faz anos, o segundo, o meu pai, se separou. Papai casou novamente, ele bem que tentou voltar com mamãe, mas, aquele coração duro só mesmo Jesus para quebrar. O problema de minha mãe é que ela não dá o braço a torcer, difícil situação. Quando a confrontei do episódio da rodoviária, quando me deixou, ela teve capacidade de dizer que não foi eu, mesmo na presença daquela amiga que estava no dia mamãe negou tudo, o que me deixou ainda mais chateada, o sentimento que trago entalado no peito, é como se eu tivesse sido abandonada pela segunda vez.

Saio do consultório apressada, as horas são fugitivas, tenho que passar no centro comercial da cidade, comprar alguma coisa pra Emily e mamãe, mesmo com o peso das lembranças nunca deixei de amar e ajudar a minha mãe. Eu sei que vai chegar o momento em que ela reconhecerá o que faço para ela.

Passo por uma rua e outra, o dinheiro é curto, tenho que ficar de loja em loja até achar o que quero dentro do que posso pagar.

O horário é fugitivo.

Termino de comprar o básico daquilo que pretendia, retorno para casa já depois do horário planejado, por certo Emily já está em casa. Esticada no sofá, fones de ouvidos, celular nas mãos. Mamãe, agoniada me esperando para receber. Desço apressada para a rodoviária, entro na correria para não perder o ônibus, por pouco não dá tempo.

Cheguei em casa às duas da tarde em ponto, correndo feito uma louca, morta de fome.

Emily está no sofá, como esperado, me cumprimenta, pede benção, vem xeretar o que trago na sacola, menina curiosa, parece o pai.

— Cadê a sua vó? Pergunto

— Na cozinha, te esperando.

Não foi diferente dessa vez, assim como de outras tantas, mamãe fez as mesmas reclamações, eu nem almocei, embora o estômago estivesse nas costas como dizem. Puxei mamãe pelo braço, ela falou que era para eu comer primeiro, mas, conheço bem a peça, se eu não for com ela, a cara emburrada ficará pior.

Lá vou eu novamente para a caixa econômica federal, por sorte, é relativamente perto de casa. Só não é mais rápido porque mamãe anda devagar. Se o meu esposo estivesse em casa pediria ele para nos levar de carro.

Vinte minutos depois, entramos no banco, vazio, por um milagre inexplicável, vazio. Não perdi tempo, saquei a aposentadoria da mamãe, coloquei tudo em sua carteira, e retornei para casa.

Quanto à mamãe... Como das vezes anteriores, tirou a cara emburrada e colocou um largo sorriso no rosto na mesma hora, guardou o dinheiro na bolsinha e foi para o centro da cidade, eu, cansada, com fome, com raiva, voltei para casa sozinha, no peito o mesmo sentimento de abandono, é sempre assim, tem coisas que nunca mudam.

Tiago Macedo Pena
Enviado por Tiago Macedo Pena em 11/02/2024
Reeditado em 11/02/2024
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