Não deve ter cerveja lá

Já era bem tarde quando chegou em casa. Jogou-se no sofá e ficou por lá mesmo. Não estava com sono, e sim bêbado. Foi acordado pouco depois por uma mulher que o sacudia enquanto dizia seu nome.

— O que é? — ele disse sem abrir os olhos.

— Sai do meu sofá. Vai embora! — a mulher gritou.

— Esta é a minha casa.

— Não, é a minha casa.

— Você não é a minha mulher?

— Sim.

— Então, porra!

— Mas nós decidimos dar um tempo. Esqueceu?

— É verdade.

— Anda, vai embora. Você prometeu que não ia dormir aqui.

— Eu menti.

— Vai embora. Achei que tínhamos nos entendido à tarde.

Ele não respondeu. Tinha apagado outra vez. Acordou assustado, com água gelada escorrendo pela sua cara.

— Vai, Armando! Você disse que ia dormir em outro lugar.

— Por que jogou água em mim?

— Você disse que ia dormir em outro lugar!

— Eu sempre durmo na nossa cama. Agora estou dormindo no sofá; tecnicamente é outro lugar.

A mulher perdeu a paciência e saiu da sala. Armando dormiu por alguns minutos. Estava com calor. Passou a mão na testa para enxugar o suor. Abriu os olhos e viu a sala em chamas. Tudo à sua volta pegava fogo.

— Caralho! — gritou assustado.

A mulher, com os braços cruzados, o olhava da porta de entrada. Parecia tranqüila.

— Vai, vagabundo. Sai do meu sofá.

— Tá maluca, mulher?

— Sai logo. Você prometeu.

— Essa porra deve ser sonho. É isso: estou sonhando.

Armando fechou os olhos. Algum tempo depois, sentiu o ambiente fresco, refrescante. Abriu os olhos e viu que estava em um local cheio de plantas, árvores e pessoas. Todas pareciam felizes. O lugar mais bonito em que havia estado. A natureza se fazia presente. Um sujeito com uma prancheta o observava e aproximou-se quando percebeu que ele acordara.

— Olá, senhor Armando. Seja bem-vindo.

Desconfiou imediatamente: “Senhor Armando? Que porra é essa de senhor Armando?”, pensou.

— O senhor está no Paraíso. Morreu no incêndio, mas veio para cá. Então, se deu bem! É só assinar aqui.

O homem entregou a prancheta para Armando. Havia um papel preso a ela. Era um diploma com o nome dele, indicando que deveria passar a eternidade no Paraíso. Achou melhor assinar antes que descobrissem todos os podres de sua vida. A menos que o critério fosse ingestão de álcool, não teria nenhuma chance de chegar perto do Paraíso. Entregou a prancheta ao homem.

— Você foi escolhido porque morreu tentando salvar seu casamento. Morreu no incêndio por amor à sua mulher — disse o homem da prancheta.

“Esses otários pensam que eu estava tentando salvar meu casamento. Que bando de imbecis! Mal sabem que eu estava tão bêbado que nunca conseguiria levantar daquele sofá. Não sabem que ela queria se separar porque descobriu que estava sendo traída.”, pensou.

— Ei, cara. Tem alguma notícia da minha esposa?

— Também morreu no incêndio.

— Mas ela também assinou os papéis? Já está por aqui?

— Por aqui?— homem riu. — Não, claro que não. Você sabe, ela botou fogo na casa, matou os dois. Ela tá no Inferno, bicho.

— Inferno?

— É, o Inferno.

— Caralho, eu devo estar sonhando.

— É verdade, você está sonhando.

— Sério?

— Sério. Quer ver?

Armando acordou outra vez. Estava no sofá da sua casa. Sua mulher estava em pé na porta de entrada. Ela ia acender um cigarro.

— Não! Não faz isso! — ele berrou.

— Não faz o quê, seu doido?

— Não bota fogo na casa. Acredite, você vai para o Inferno, eu não. E não quero ir para o Paraíso. Não deve ter cerveja lá. Me recuso a beber leite pelo resto de minha existência.

— Não ia botar fogo em nada, só ia fumar um pouco.

— Jura?

— Juro.

— Jura por Deus?

— Você não acredita em Deus.

— É verdade. Então jura pelo cara da prancheta, nele eu acredito.

— Que cara da prancheta?

— Um dia você vai conhecê-lo, eu acho. Mas jura por ele.

— Tá bom: juro pelo cara da prancheta que não vou botar fogo na casa. Tá bom assim?

— Ótimo. Agora vou embora como havia prometido.

— Não precisa ir, já te perdoei.

— Já?

— Já.

— Jura?

— Ah, Armando, vai se foder. Não vou jurar mais porra nenhuma.

— Desculpa. É que acabando tudo bem assim, parece até sonho.

— Parece sonho?

— Parece.