PARALELAS

(continuação de Hino ao Amor)

Cardoso voltou para o apartamento depois das vinte horas, praticamente expulso pela bibliotecária da Faculdade de Medicina. Nesses meses de final do curso, esteve ausente do mundo, não falou nem mesmo com Elias, seu amigo de infância ou sequer ligou para Helena. Afinal ele nem tivera a oportunidade de dizer do seu interesse por ela...

Largou sobre o sofá da sala, o livro texto do Dr. Y.L.Wolf, Ph.D. por Harvard, titular da cadeira de Emergência Neonatal na faculdade de medicina em Boston. Tido e havido como a maior autoridade mundial no assunto.

Um bosta incompetente metido à merda, no conceito do Sr. Galvão, técnico do laboratório de anatomia.

Homem com mais de 40 anos na profissão que sabia bem mais que a maioria dos professores da instituição. Ele era taxativo – por causa desse livro as gavetas do necrotério nunca estão vazias...

Mesmo sem concordar com os postulados, recheados de esquemas e desenhos nas mais de 400 páginas do livro, todo estudante teria que afirmar que, aquelas técnicas eram a solução para todo e qualquer problema com os recém-nascidos.

O livro fora indicado pelo orientador e Cardoso não podia se negar a acatar tudo o que havia nele se quisesse que a sua tese fosse aceita pela banca.

Depois da defesa, aí sim, o título de doutor lhe seria oficialmente reconhecido pela academia e não mais por imposição do insignificante decreto do Conselho Federal e ele poderia questionar o Dr. Y. L. Wolf e demonstrar as acertadas observações do Sr. Galvão.

Ao abrir a porta do apartamento, mesmo com o olfato prejudicado pelas muitas horas em que esteve manipulando peças conservadas com formaldeído, Cardoso sentiu o odor desagradável de bolor vindo de algum lugar dentro daquela bagunça generalizada. Pensou em voz alta - melhor abrir portas e janelas para o ar circular e levar para bem longe esse odor desagradável.

Preparou o café forte e tomado puro em goles pequenos, veio para a sala apanhar o livro que, caindo da sua mão, bateu com força na mesinha derramando sobre o tapete os restos bolorentos da pizza que fora a refeição, talvez do mês passado.

A sujeira verde e gosmenta se espalhou e o cheiro forte tomou conta do ambiente.

Como de costume, pensou novamente em voz alta – não tem jeito, preciso de uma faxineira agora – e imediatamente, ligou para o apartamento do síndico.

Faltava pouco para a meia noite daquela sexta-feira quando Elias recebeu a mensagem de Hortência:

– Acabo de embarcar. Vou cumprir a turnê dos meus sonhos. Serão 82 cidades na Europa, Ásia e América, começando por Viena. Não pretendo voltar ao Brasil. Espero que você acredite na sinceridade e no amor que lhe será oferecido e que também ame essa moça, pois assim os dois serão felizes. Adeus.

O mundo se fechou diante dos seus olhos. Abandonou-se no sofá da quitinete e chorou amargamente.

Tudo fora uma grande ilusão...

Precisava falar com Cardoso, somente ele saberia dizer onde ele tinha falhado e porque não conseguira conquistar o amor eterno de Hortência Magalhães, a virtuosa pianista clássica que sabia, como ninguém, interpretar as músicas que enternecia todos os corações...

Cardoso viu os insistentes chamados de Elias no celular, mas estava exausto.

Não queria nem tinha tempo para frivolidades, principalmente àquela hora da noite e, por precaução, desligou o telefone da mesa de cabeceira.

Ele não estava para ninguém até o dia em que enfrentaria a banca do doutorado.

Nem mesmo para Helena ele lembrara de ligar.

Ela também tinha culpa pelo afastamento. Por que não ligava para ele? Será que não tinha entendido que ele se interessava por ela? Será que era preciso dizer isso com todas as letras como fazia o ridículo Elias em suas demonstrações de afeto? Depois que tivesse recebido o grau de doutor, ele diria a ela com todas as letras que precisava da sua companhia, mas agora não. Agora não tinha tempo.

Passava um pouco da meia noite quando Helena ligou para Elias.

- Eu quero falar com você agora. Posso subir?

- Desculpe se encontrar algo fora de lugar. Homem não tem muito jeito para arrumações de casa.

- Elias, eu vou ser bem franca com você. Desde que nos encontramos, naquela tarde em que você nos apresentou a dona Hortência...

- Por favor, não me fale dessa mulher.

- Falo sim. Você precisa saber. Dona Hortência e eu nos tornamos amigas. Ela sentiu desde aquele encontro na churrascaria o meu interesse por você, por sua maneira gentil e carinhosa... que era um caso típico de amor à primeira vista.

Ela sabia que era de uma pessoa como eu que você estava procurando, porque somos como linhas paralelas buscando a nossa felicidade em miragens que se dissolvem quando chegamos perto...

Ela lhe ama como se fora o filho que ela não teve por ter dedicado sua vida toda ao piano.

Eu sabia desde sempre da turnê que ela manteve em segredo para não lhe magoar...

Hoje, conforme o combinado, fui leva-la no aeroporto, recebi cópia do recado que ela mandou para você e isso me fez tomar a decisão de estar aqui para esclarecer tudo...

Agora a nossa felicidade depende da sua resposta...

Você quer casar-se comigo e promete que vamos nos amar até a eternidade?