Anacruse

Surgem sentidos para que não se percam as datas.

Como guardaria por muito o dia em que a avó passou a viver no alto de um poste.

Mãe, a vó pode morar em cima do poste?

Esta é a vida, meu filho, o tempo oferece direitos que não são nossos.

Respeite-se.

Vivendo enfim as horas de um tempo sonhado, quando não há mais satisfações em débito, a avó abotoou a saia, calçou as meias de lã - sabia que ali viria o frio –, içou-se poste acima com inimaginável habilidade.

Mãe, como uma mulher que já passou dos noventa tem forças para se segurar por tanto tempo em cima de um poste?

As dúvidas são só nossas, meu filho. Ela viveu por tanto tempo que guarda todas as respostas escondidas junto aos lenços e às receitas da farmácia.

Explicou o pai que seu peso era agora imaterial, que sua força não vinha mais de músculos de carne.

Tudo se tornou mais leve.

Não carregava mais sacolas por supermercados, números infinitos, contas na carteira de trabalho, entendimentos de novelas.

Apenas pensamentos suportáveis.

E se a vó levar um choque?

Ela não conduz mais eletricidade, meu filho, fica-se com o tempo isolado da forma de realidade que conhecemos aqui embaixo, a luz só a acerta de calor.

Quis a família comer o pão que só a avó sabia fazer. Juntaram ingredientes e ela assim o fez para agrado das pequenas cabeças que via lá de cima. Segurando-se apenas com as pernas, mexia aquela grossa massa para o espanto dos demais.

Assim que a luz acender ela desce?

Mas ela puxou o tapa-olhos e adormeceu ali mesmo, sem único movimento.

O tempo provou que a avó sabia o que estava fazendo.

Que fez o pão e nem provou, que costurou lá de cima as blusas de duas netas, que ensinou um remédio de plantas para a enxaqueca do pai.

Já era tarde.

Saiu pelo escuro, sentou-se ao pé do poste para ler ao descanso da avó.

“Vivo um crepúsculo bonito, com a suíte nº1 de Bach, para violoncelo”.

Foi sua última estrofe.

Ela gostava de Rubem Alves.

Marcos Eduardo Penteado
Enviado por Marcos Eduardo Penteado em 01/02/2024
Reeditado em 15/02/2024
Código do texto: T7989721
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