O senhor Vaga-lume e o tempo
Fiz o sinal da cruz. Vi que o ambiente estava lotado. Sentei-me no banco da igreja, acompanhada da minha mãe. Admirei o enorme contingente de fiéis.
Uma figura-fundo tomou conta do meu campo perceptivo, fixei-me.
Cabelos branquíssimos. De tão alva a pele chegava a emrubrecer. Ainda que os cabelos brancos acusassem a idade avançada, o rosto desafiava a lei da gravidade, do tempo, não tinha rugas. Os olhos não tive a oportunidade de ver a cor, pois quando se abriam pareciam estar impenetráveis ao ambiente, e se fechavam muito rapidamente, embora borboleteassem os cílios. Afastado o país, afastada a fome de missa de meio dia, afastado os problemas, e talvez o mundo.
Tentei ignorá-lo, concentrar-me no sermão eclesiástico. A minha mãe também observou o indivíduo e me fez voltar os olhos a minha figura-fundo. “Luana... Aquele senhor ali... Olha só, que estranho! Desde que chegamos ele não cansa de fazer esse movimento. Deve ter algum problema, coitado!” Algumas beatas aproveitaram o comentário para lamentar também: “pobre senhor”, elas balançavam as cabeças e levavam as mãos até suas bocas para mostrar que estavam chocadas e penalizadas com que via. Não tive como me desligar daquele senhor, parei nele a minha vista.
A mão dele descia, delicadamente, como quem acaricia com cuidado a face de alguém que ama. Curvava um pouco o corpo. A mesma mão agarrava com firmeza uma imagem, muito embora me passasse um possível sinônimo do que a leveza pode ser afinal. A imagem não sei dizer se era um santo, ou se era uma Nossa Senhora... O que interessa é que era uma imagem, e que ele repetia o movimento até convencer-me de observá-lo. E nenhum crente diria que aquilo se tratava de uma manifestação divina, no máximo diria que era uma perturbação na vida daquele homem, que poderia ser expulsa. Mas ele me parecia está tão bem, supunha estar sob a proteção de um exército de anjos em eminência de ser convocado a uma guerra espiritual. Ele era incansável no seu insistente movimento. Algo parecido com os filmes de Charlie Chaplin, que primeiro nos chama a atenção pelos movimentos repetitivos, depois nos faz rir, depois nos deixa intrigados, logo depois impacientes, compenetrados, e, enfim, o silêncio chega a gritar em nossos ouvidos: “sinta, não importa a mudez, apenas veja e sinta, principalmente sinta!” E isto poderia parecer idiota para quem o via, mas ele não via. O “problema” dele era que ele não via para fora, ele queria apenas vislumbrar-se com seu ritmo. Não interessava o tempo... Não interessava o padre. Não interessava a multidão; o que ele queria era ri para o vento, aprofundar-se dentro de si próprio, não como Narciso se olharia à margem do rio, mas como se ao fazer isso ele tocasse a fé, o tempo, Deus, o amor. Acariciava o rosto, que talvez na sua imaginação nem fosse dele mesmo.
Eu pensava na minha falta de grana. A minha mãe, ao celular, avisava a um colega que iria depositar o dinheiro ainda naquela tarde. O padre fazia um elogio à elegância da gravata de um jovem, já conhecido de outras missas. Uma senhora ao meu lado reclamava do calor. Um homem dizia não conseguir acompanhar os cânticos, reclamava-se da sua falta de freqüência à missa. Eu reclamava da fome: “por que aqui é ao meio-dia a celebração?” E durante toda à pregação do padre ele não parava, ele estava ali sozinho, no meio da multidão. Afastado dos sussurros dos homens que o ridicularizavam, afastado da falta de dinheiro, afastado do calor, da gravata.
Lá fora, a movimentação urbana. A manifestação do mecanismo humano. O comércio ambulante. O som angustiante das buzinas dos automóveis. Os carros de som anunciando as promoções de lojas. A indiferença robótica em carne viva. Como será que ele consegue se desprender assim dos olhares alheios? Eu me perguntava. Me ocorreu uma fábula de infância, que relembrei outro dia lendo um livro, a fábula da centopéia que dançava perfeitamente até que os bichos da floresta chegaram até ela e perguntaram como ela fazia para dançar tão bonito, quais seus passos, e então a centopéia preocupada com os “passos”,preocupada em observar a si mesma através da avaliação de terceiros, e em dar a “melhor resposta”, nunca mais conseguiu dançar. Será que aquele senhor me convidou à moral da história? A uma fábula? O mundo desaprendeu a dançar, mas ele, aquele senhor, conhece os passos e dança, porque ele não se preocupa com a acusação do auditório – os olhares alheios. Afastada a falta sentimento, a fome dos pobres, a guerra do seu país, a censura dissimulada, a estupidez da violência. Ele apenas faz a diferença, enquanto os outros revelam as suas indiferenças. Ele tenta mudar as coisas, mas sem perder sua originalidade. Ele é a constante mutável humana. Ele, que nem sei dizer qual o nome, talvez mais um José, como tantos do meu Brasil, chamou minha atenção a vida!
As posições de ioga, a meditação mulçumana, a reza católica, uma oração, a paciência oriental, nada disso conseguiria desafiar tanto o tempo como aquele senhor. Afastada a pressa de terminar projetos, formaturas, mestrados, doutorados. Afastada a vontade de arranjar um emprego decente. Afastado o almejo de um salário digno. Afastada a aflição da velhice exposta. Afastada a juventude transitória. Afastado de uma história de amor a ser realizada. Ele resolveu apenas personificar um novo estilo de soprar sua mantra, tricotou uma divindade e a vestiu. E, assim, se destacou dentre as muitas cenas, que a minha retina já assistiu, como um vaga-lume no meio de um matagal, à noite.
Ele não se importava com que os outros pensavam a seu respeito. A mão descia até o pescoço e voltava até a altura dos cabelos, e a imagem na mão. Ele não ligava para a voz de cantor lírico que o padre possuía. Ele com certeza não se perguntava: O que eu posso ser para o mundo? O que o mundo poder ser para mim? Talvez a indagação dele fosse assim: “O que eu e o mundo somos juntos?” Ele apenas queria fazer a sua parte: ser feliz, ajudar a reconstruir o mundo, dessa vez mais habitável. Não interessa o discurso delirante do “dessa vez a minha vida muda”. Não interessa as anotações de objetivos feitas na mudança de ano, que possivelmente não vão ser alcançados por falta de esforços de quem a fez. Não interessa a vontade de fazer algo novo. Perto dele eu podia ver o quanto o tempo é subjetivo. Ao observá-lo eu via que a oportunidade não bate à porta, ela é um resultado de uma ação e é única, o que talvez torne a vida complexa. Porém, nele eu via também o quanto a vida é simples e o quanto os homens são vulneráveis a complexidade. Ele repetia, repetia diferente, repetia admirado, repetia com amor, repetia leve, repetia sorrindo e o horizonte devolvia um sorriso para ele, e ele vivia com seu “problema”! E, atualmente, as pessoas observam com olhos comprometidos, reclamam dos seus problemas, tentam apontar e solucionar os conflitos dos outros,julgam segundo o que acham que viram ou o que “sentem”, e repetem, repetem, repetem... E nem sabem que vivem!
Ele me propôs criar uma fábula: “O senhor Vaga-lume e o tempo ”... E eu lhes contaria, amigos, esta fábula... Mas o bairro, a cidade, o estado, o país, o continente, o mundo estão estagnados na repetição por causa do medo dos olhos olheios. Lá vamos nós nesse mesmo embalo. E nossas vidas repetem, repetem, repetem... E eu não sei quando e onde isso vai parar! Afinal, existe redenção para este pecado: não viver?