HINO AO AMOR
O telefone na cabeceira da cama tocou várias vezes. Sonolento e de mau humor Cardoso atendeu com um rosnado...
- Hum!
- Desculpe meu amigo, eu não imaginei que você ainda estivesse dormindo. São quase onze horas...
- Elias, hoje é domingo. Único dia da semana que eu não tenho plantão nem hora para acordar, respondeu Cardoso com enorme desagrado.
- Desculpe. Olhe eu sinto muito ter esquecido desse detalhe, mas o fato é que eu encontrei o definitivo amor da minha vida e não podia deixar de comunicar essa maravilha ao meu único e verdadeiro amigo.
- Se não perdi a conta esse deve ser o seu oitavo ou nono amor definitivo.
- Mas dessa vez é para sempre. Tudo em nós se combina e se completa até quando enfim a vida terminar, como o Hino ao Amor, da eterna Piaf...
- Eu espero que vocês morram ainda hoje e se encontrem na eternidade, porque eu, enquanto me sobra o restinho de sono vou voltar a dormir, depois, noutro dia, em qualquer outra hora, a gente conversa. Está bem?
- Não meu amigo, tem que ser agora. Daqui a pouco chego aí para lhe contar os detalhes.
- Não, não, não. Não faça isso não, Elias. Vamos fazer assim, as duas da tarde a gente se encontra na Churrascaria Belém, almoça e você me conta essa história eletrizante. Eu prometo que não vou faltar. Palavra de honra.
Cardoso virou as costas para o telefone da mesinha, mas não conseguiu cair no sono outra vez. Ligou o celular que havia desligado na véspera e uma enxurrada de ligações perdidas, todas de Elias, apareceram na telinha. Verificou se tinha alguma mensagem do maternidade (felizmente não), viu as inutilidades das redes sociais e resolveu que era melhor levantar de vez. Café antes ou depois do banho? Pensou consigo. Melhor antes, para terminar de despertar... nesses momentos, sinto falta de Neusa, pensou em voz alta.
Já se passaram três anos desde o divórcio e, o lado direito da cama ainda estava vazia e não tinha com quem conversar quando, depois das 12 horas do plantão diário, voltava para o apartamento que demonstrava em todo lugar a ausência de uma mulher, daquelas que sabem organizar tudo e que têm um lugar para cada coisa.
Colocou água na chaleira, despejou o pó de café usado no lixinho da pia, abarrotado, sem a tampa, e lavou o coador.
Enquanto esperava a chaleira apitar, foi olhar as condições do tempo através da janela da sala. A luz do sol lhe feriu os olhos. O dia estava radioso, convidativo para um banho na piscina do condomínio. Talvez encontrasse aquela gostosona do 305. Talvez ela lhe pedisse para passar protetor solar nas suas costas. Talvez dessa vez ele tivesse a coragem para se declarar a ela, mas faltava-lhe a disposição e tenacidade para encontrar o amor da sua vida como sobrava no amigo Elias.
A chaleira avisou que a água estava fervendo. Agora, sorvendo aos poucos o café forte e quente com a sua caneca preferida, foi procurar o calção de banho no guarda-roupas, retrato fiel do furacão de categoria 5 que havia passado por dentro dele.
Oh! Dia de glória. Ela estava lá, no cadeirão forrado com a toalha branca. Linda, tomando sol como uma foca do ártico sobre uma placa de gelo. Passaria meio displicente, fazendo de conta que não a havia visto, que estava apenas procurando um local para colocar o cadeirão sem que tivesse dado conta da sua presença. Tudo inútil. Fez questão de cumprimenta-la e pedir licença para armar a sua cadeira ao lado dela. Ao passar protetor solar nos ombros perguntou se ela também queria e se ofereceu para aplicar. Ela aceitou e as mãos treinadas do enfermeiro chefe da Maternidade Menino Jesus, que conhecia todos os detalhes da estrutura feminina agiu com eficiência e marcante profissionalismo.
O papo alegre e descontraído dos dois, entre as inda e vindas da piscina, foi interrompido pelo chamado de Elias de dentro do bolso do roupão. Ele havia esquecido o compromisso de ir almoçar com o amigo de infância. O eternamente enamorado Elias....
Sem se dar conta de como havia feito o convite e incapaz de conter a satisfação por Helena ter aceitado ir com ele, Cardoso encontrou Elias que também estava acompanhado por uma senhora cuja elegante aparência e modo de vestir, sugeria serem mãe e filho num almoço domingueiro, fora de casa.
Elias fez a apresentação. Esta senhora é a divina e maravilhosa Hortência Magalhães, pianista clássica, detentora de vários prêmios internacionais e o seu repertório inclui de Mozart a Jobim. Toda semana ela toca no salão VIP do Restaurante Paris e foi lá que as forças do universo e a atual combinação dos astros fizeram com que nos reencontrássemos nesta existência, desta vez para sempre como na canção de Edith Piaf...
(continua em PARALELAS)