Azul
Quente. Abafado. Quatro paredes brancas de PVC. Trinta e poucos alunos suados e entediados. Ninguém presta a menor atenção nos números sendo escritos no quadro branco. Preto e branco. Tinta preta. Quadro branco. Paredes brancas. Uniformes brancos. Papel branco. É tanta brancura que parece um hospício! O único contraste está nos tons de nossas peles: do preto ao pardo. A professora para, tampa o pincel, vira pra gente e começa a falar. Observo sua boca se mexendo, mas não entendo nada. É como se eu estivesse em um país estrangeiro e todos falassem outra língua.
Rafaela se abana com a capa do caderno. Sou sortuda, cheguei cedo e sentei ao lado de uma das duas únicas janelas. A brisa que bate no meu rosto mal serve pra secar o suor que escorre pela minha testa, mas ainda sou invejada e eu invejando aquele urubu lá no céu tão azul e lindo que parece uma piscina e eu poderia mergulhar nele. Só que eu não sei nadar. Melhor voar então, né Rafaela?
– Oi, Bia? O que?
– Voar. Você ia gostar de voar?
Ela ri. – Voar?
– Gente, assim não dá, vocês precisam prestar atenção! Isso aqui é matéria de prova!
– É que tá muito calor, professora...
– E eu não sei? Também tô com calor! Todo dia faz calor aqui, mas a gente precisa focar!
Observo as asas pretas do urubu cortando o céu. Seria tão delicioso voar um pouquinho... Imagina, Rafaela, se eu saísse voando por esta janela e fosse lá pra cima, feito um balão de gás hélio? Ah, seria delicioso! Mas é provável que fossem atirar em mim, ou me aprisionar e me usar como arma do governo. Ou me usar pra estudo científico. Me prender e me estudar. Eu morreria, Rafaela.
– Bia, pelo amor de Deus, quantas vezes eu vou ter que chamar a sua atenção? Será que é tão difícil assim se concentrar na matéria?!
– Desculpa, professora, é que tá muito calor mesmo.
As narinas da professora inflam. Quase dá pra ver o ar quente saindo por elas. Ergue o braço, aponta pra saída.
– FORA!
Congelo. O arrepio sobe pela minha espinha como um calafrio enquanto me levanto, pegando a mochila. Todos observam meus passos. Rafaela até parou de se abanar. Morde o lábio e eu desvio o olhar porque não quero sua pena nem a de ninguém. Saio do hospício. O ar fresco empurra meu cabelo para trás, secando o suor na minha testa. Sento na calçada. Quero desaparecer, mas putz, é um alívio querer desaparecer sentindo esse vento na cara.
– Voltando ao que eu estava dizendo...
Daqui dá pra ver melhor os urubus voando juntos, fazendo aquele V de vitória, só que mais parece de vigarice. Se eu pudesse, colecionaria palavras. Vigarice, verdade, veracidade, verossimilhança. Tenho vontade de pegar o celular para jogar Letroca, mas sei que lá de dentro da sala, os olhos da professora estão pregados em mim. Me pergunto por que escolheu ser professora. Me pergunto o que ela acha que eu vou ser, mas já sei a resposta: nada. Ou caixa de supermercado. A moda agora é dizer que vamos todos acabar trabalhando em supermercado e, no pior dos caso: embalando os alimentos, porque aí teremos que ficar de pé o tempo todo. Antes, era ser gari, mas agora parece que ficou difícil. Nem pode mais falar esse tipo de coisa, porque é preconceituoso, mas será que também não é preconceito com as pessoas que embalam os alimentos no supermercado? Talvez, daqui a alguns anos, comecem a achar que sim, e então digam que vamos acabar vendendo picolé na praia. Em algum momento alguém vai apontar o dedo e dizer "não se pode mais falar assim disso", e o alvo vai apenas mudar de direção. Não é curioso? Queria um livro agora. Qualquer um. Só pra não continuar olhando pro céu e sua imensidade que parece que vai me esmagar, tão pesado quanto o meu futuro e parece que meu coração vai parar a qualquer momento.
– De novo, Beatriz? – pergunta a professora e estremeço. Ela está atrás de mim.
– Desculpa, professora.
– Todo dia eu preciso chamar sua atenção, que coisa chata!
– Desculpa.
– Não adianta você dizer “desculpa” se vai fazer de novo amanhã!
– É que é muito...
– Eu já sei que é muito quente lá dentro, que é uma fornalha, mas não posso fazer nada sobre isso!
Estremeço outra vez. De repente, começo a sentir um friozinho.
– A partir de amanhã você não vai mais sentar perto da janela. Vai sentar na primeira carteira, coladinha em mim, ouviu?
– Não, professora, por favor!
Ela hesita. Nunca implorei por nada, mas imploro pela janela. Minha janela. Sem ela, não sou nada. Sem o céu, sem os urubus...
– Bia...
– Por favor! Eu prometo que vou me esforçar e prestar atenção...
Ela balança a cabeça, descrente. É claro que vou me perder no azul novamente. Ela sabe, e deixa. Finge acreditar.
– Tudo bem, mas eu quero uma redação sobre a matéria de hoje entregue amanhã na primeira aula.
Assinto e entro na sala. Coloco a mochila sobre a mesa e pego o pincel. Crítica, escrevo no quadro.
– Alguém pode procurar essa palavra no dicionário e ler pra mim?
– Eu, professora, eu!
– Não, eu!
– Professora, professora! Eu aqui, eu!
Ligo o ventilador. Caminho por entre as mesas, meu salto alto ecoando pela sala. Aponto para a aluna ao lado da janela, a de trancinhas. Contente, ela ergue o dicionário e começa a ler.