Chuvas da minha infância
Corriam os anos cinquenta e eu corria da chuva , agarrada às mãos geladas, de pânico, de minha mãe - fosse ela fraca, forte, de verão, passageira, fininha, de inverno, ou trombas d’água, ameaçadoras, com ventos traiçoeiros que tudo varriam... Morávamos no sítio, em uma área rural próxima a Londrina, mas que se tornava distante , dadas as condições precárias da estrada: barro puro, lamacento, pontes frágeis, ... minha mãe devia ter algum trauma de infância. Mal surgiam as nuvens negras no céu, com medo mórbido de temporais, ela já nos recolhia , todos sob sua saia, debaixo da mesa de madeira maciça da sala - feita pelo seu Antônio, moveleiro espanhol, pai da minha comadre Norma, que tinha um marcenaria em frente à casa de minha avó, na cidade ; os espelhos eram cobertos para não atrair raios, dizia a mãe, portas e janelas trancadas, com tramelas e benzimento. Meu pai recitava fervorosamente, o credo com as folhas de coqueiros artisticamente trançadas e benzidas no domingo de ramos na capelinha do patrimônio ; animais de estimação : gatos, galinhas, pintinhos, cachorros, cabritos, porquinhos, todos recolhidos para dentro . Mas, isso, se a ameaça não fosse grande, e se o pai estivesse conosco, caso contrário, lá íamos, todos, mãe, eu, Wilson, Lote, Rufina, Zito, para casa dos colonos, na casinha da Rosa do Zeca, que era mais próxima, minúscula, mal acomodava o casal e suas duas filhas, mas que esticava de tamanho para nos acolher; na casa da Dona Rosa, do Seu João, um pouco maior, onde moravam oito pessoas: Neide, Jane, Antônio, Valdir, Moacir, Luiz, ou na casa sede da propriedade, lá no alto do morro, perto do cafezal, da mina, do riacho, onde moravam a Dona Estela e Seu Antônio, mais seus nove filhos: Nena, Atílio, Jair, Arnaldo, Noeli, Maria, Odair, Walter e José Carlos; Íamos de mala e cuia, nem sei como nossa querida Dona Estela arranjava lugar para todos, porque poderíamos até pernoitar por lá... isso já era um hábito. A família anfitriã nos acolhia com carinho e alegria. Comíamos do seu pão, bebíamos do seu leite. Saciávamos a fome da amizade. Fazíamos do medo uma festa. Quiçá os anfitriões se sentissem também mais seguros. E a criançada se deliciava nos colchões macios de paina pelo chão espalhados. Um mar de pernas estiradas . Difícil mesmo era enfrentar a chuva, se estivéssemos dentro da velha jardineira, no trajeto, Três Bocas/Londrina ou vice-versa, quando ela patinava nas estradas íngremes, enxarcadas pela chuva. Minha mãe fazia um escarcéu , enquanto o motorista não parasse para descermos, não sosssegava ... e lá íamos, em fila indiana, os seis, ou sete, rentes à ribanceira, amedrontados, à mercê dos raios e trovões, amassando o barro vermelho, grudento, tinta para nossas roupas alvas como o leite de madrugada tirado pelo pai dos úberes fartos e flácidos de nossa única vaca leiteira, Jersinha. Mas nada disso atrapalhava o nosso prazer de viver no campo, cercados de densas matas virgens, árvores frondosas , cravos vermelhos, margaridas, dalias, rosas, prazerosamente plantados pelas mãos calejadas de minha mãe, pássaros mil, borboletas multicores, vagalumes, riachos, rios, banguelas, minas de águas puras e refrescantes, frutas de todos os sabores: pitangas, jabuticabas, uvas, cana, araticuns, mexericas, laranjas; na horta: abobrinhas de cerca, alfaces, almeirões, chicória, cenouras, batatas doces, viçosos, orvalhados, fresquinhos; frutinhas de maria preta, juá, serralhas, que nasciam sem ser semeadas, nos pastos e cafezais; na minúscula cozinha, com varais de linguiças caseiras, palhas de milho e cascas de laranja, o alho frigindo na gordura de porco que minha mãe colocava no feijão fervendo na panela de ferro sobre a chapa do fogão à lenha. O cheiro, inesquecível, entrava pelas narinas ranhentas, atiçava o estômago, era hora do jantar; bonecas de espigas de milho verde, balanços de cipós, ou nos galhos da frondosa paineira no vasto quintal que circundava a velha e desbotada casa de madeira onde morávamos; as brincadeiras na tulha de café, causos assustadores, de sacis , mulas sem cabeças e lobisomens, contados pela Geralda, nossa vizinha, à luz dos lampiões e lamparinas, os terços semanais de Nossa Senhora em família, ou na casa dos vizinhos amados, com destaque a casa acolhedora de D. Maria Bianchi e Seu Nico Baron, minhas irmãs de alma, Jocely e Suely Baron ; As noites de lua cheia, céu estrelado, e o canto único de minha mãe acompanhada pelo doce violão de meu pai... não há, ó gente, ó não, luar, como este do sertão ...