SÉRIE: MULHERES DO BRASIL - A BAILARINA
Seu nome era Nicoly. Ela era uma menina de classe média, pais guerreiros, que se esforçavam por realizar seus sonhos. E o maior sonho dela era ser bailarina. Alimentou esse sonho desde os sete anos, quando assistiu ao Lago dos Cisnes pela primeira vez, em uma das ocasiões em que o espetáculo foi montado no Brasil, em 1988, quando voltou ao palco do Theatro Municipal, no Rio de Janeiro.
Acompanhar essa apresentação da montagem original do Balé Bolshoi, com versão de Eugenia Feodorova, foi algo marcante na vida de Nicoly. O espetáculo contou com as participações dos bailarinos Ana Botafogo, Cecília Kerche, Jorge Esquivel, Jean-Yves Lormeau e Elisabeth Platel. A pequena Nicoly podia não estar entendendo todo o libreto, mas os bailarinos, e sua performance no palco, encheram os seus olhos.
Além disso, acompanhar de perto a carreira vitoriosa de Ana Botafogo foi a segunda força motivacional a impulsionar seus anseios de também ser uma bailarina profissional. E Nicoly não deixou por menos. Seus pais a inscreveram no famoso curso de bailarinas de Madame Arcadievna, onde ela teve um desempenho acima da média, alcançando destaque no Corpo de Balé do curso, sendo requisitada para apresentações várias, em shows e eventos de pequeno e médio portes.
Esse frenesi a acompanhou até os treze anos, tendo ela atravessado os onze e os doze como a bailarina revelação do Brasil. Com catorze anos, a mãe de Nicoly assinou o primeiro contrato para ela integrar o corpo reserva do Balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Conviver com aquela equipe, não só por ser composta por expressões de renome, mas acima de tudo por realmente estar convivendo de perto com a nata do talento nacional, foi uma verdadeira escola para a nossa pequena.
Nicoly era uma doce menina. Ela tinha a dança no sangue e o balé na ponta dos pés. Quem a visse desenvolta pelo bairro onde morava; com as amiguinhas na Praça; nas atividades escolares; e, também, nos domingos de adoração na Igreja Batista, concluía logo estar diante de uma menina resolvida, feliz consigo mesma e com o próximo, e desfrutando de uma boa base familiar.
Diferentemente das amiguinhas que já se apresentavam de namoricos, Nicoly estava focada em seu sonho e se dedicava arduamente aos preparativos para se tornar uma bailarina de carreira internacional. Deixe estar que por essa época já havia vários meninos de olho nela. Destes, o mais resoluto era David, um jovem tijucano, aluno do Colégio Militar do Rio de Janeiro.
Ao estar próxima de completar quinze anos, o pai lhe deu a opção de escolher entre uma festa ou uma viagem à Nova Iorque, para a temporada do espetáculo mais famoso da cidade, The Nutcracker – O Quebra Nozes, com performances entre a última semana de novembro e o mês de dezembro, durante as comemorações natalinas.
Ela escolheu a viagem, mal sabendo que isso iria mudar completamente a sua vida. Junto com a viagem e suas despesas – incluindo os ingressos para os shows realizados no David H. Koch Theater – os pais lhe deram 1,5 mil dólares em Travelers Cheques, respaldados pela American Express, com a recomendação explícita de que ela tivesse sabedoria no seu uso.
No aeroporto ela foi surpreendida pela presença de David – o amor secreto que ela possuía, sem o saber – que fez questão de revelar-se, para dar ao conhecimento da amada as suas aspirações de tornar-se seu namorado. Ela já o conhecia de vista, já que ele era integrante da orquestra do Colégio Militar e haviam se esbarrado em vários eventos. No entanto, ainda não tivera a oportunidade de papear com ele. Pois o rapaz revelou suas intenções de maneira discreta, aproveitando ocasião de tê-la a sós, enquanto os pais acertavam a liberação do bilhete de passagem.
Foi por uma amiga comum, que ele ficara sabendo daquela viagem e seus detalhes. A estratégia do enamorado músico foi brilhante: ele havia comprado um livro de poesias de um conceituado poeta do Recanto das Letras, feito dedicatória e anexado uma carta manuscrita em que revelava seus sentimentos. Com isso, não demandaria muito tempo na abordagem. E foi o que aconteceu: apresentou-se, explicou suas intenções, entregou o envelope com o livro e informou que o mais ela saberia quando o abrisse. Em seguida, desejou-lhe “boa-viagem”, a tempo de evadir-se ante a aproximação dos pais da moça.
Nicoly fez cara de surpresa, mas tomou das mãos do rapaz o pequeno volume, guardando-o em seguida na bolsa. Quando os pais chegaram, a mãe perguntou-lhe se estava tudo bem – dando a entender que notara alguma coisa – mas, ela apenas respondeu com um monossilábico “sim”.
A semana de Nicoly na The Big Apple foi – para utilizar-me de um adjetivo que realmente expressasse a realidade – esplendorosa. A garota parecia estar flutuando ao transitar pelas ruas da cidade. Do hotel para os shows, dos shows para o hotel; do hotel para os shoppings e por ai vai – não se esquecendo das incursões diárias que ela fazia pelo Central Park – ela respirava a todo instante a cultura norte-americana.
Certa noite, no quarto do hotel, ela lembrou do envelope recebido no Aeroporto do Galeão e resolveu examiná-lo. Pegou o livro, manuseou, mas logo lembrou da carta e folheando com ligeireza, logo a encontrou, abrindo pressurosamente. Leu, de uma vez só, com respiração suspensa.
O conteúdo era realmente de tirar o fôlego. Uma perfeita declaração de amor, que seu coração adolescente jamais tivera oportunidade de conhecer, sequer receber. David se esmerara com as palavras, visto que tinha plena convicção de que não teria muitas chances de conquistá-la. Seria preciso aproveitar as poucas oportunidades ao seu dispor.
Então, foi longe de casa, num lugar estranho, distante da família e da sua pátria amada e, até mesmo do emitente de declaração tão inspirada, que ela foi fisgada pelo amor. Era tudo muito novo para ela, pois, até então, não tinha dado chances de aproximação a nenhum menino. No entanto, um vislumbre de paixão, uma pontada de emoção, um sentimento ainda turvo fez o seu coração estremecer. “O que teria sido aquilo?”, se perguntava.
Trecho da carta de David, assim dizia: “Espero que não te assustes nem interpretes mal esta minha iniciativa. Justifico-a, na convicção que tenho de que o que sinto por ti é algo incomum. Seria injusto comigo mesmo, se não tomasse essa iniciativa extrema de confessar o meu amor por ti. E faço-o com transparência, sob o risco de parecer ridículo, mas com total sinceridade”.
A bailarina lia a carta, assentada de pernas cruzadas na cama do quarto de hotel, sentindo o coração palpitar esperanças. Ela prosseguiu em mais um trecho: “A gente já se conhece há pelo menos três anos. Nunca nos falamos, mas eu já te observava de longe, já a tinha sob a mira de meus olhares telescópicos. Nunca me aproximei, em respeito à dedicação total ao teu sonho, que percebia em ti. Essa capacidade de te manteres focada nos teus objetivos, essa determinação e, é evidente, tua beleza graciosa e esguia, qual garça suave a embelezar a natureza dos humanos, me atraiu de pronto”. Nicoly suspirou e prosseguiu: “Estou apaixonado, menina, e queria muito mesmo a chance de te conhecer mais e, quem sabe, tornar-me teu namorado”.
A menina levou o papel de carta ao peito, próximo ao coração, e fechando os olhos, agora apaixonados, suspirou. Por breves segundos manteve-se nesta posição, refletindo em tudo o que acabara de ler. Seu comportamento, embora demonstrasse uma certa simpatia pelo que acabara de ler, ainda estava indefinido. É claro que havia gostado de se sentir querida, se sentir amada, mas as resoluções pessoais que havia tomado, sobre adiar ao máximo qualquer envolvimento amoroso até definir seu lugar no círculo restrito do balé nacional, a deixavam insegura diante de um amor tão explícito e tão eloquente.
A semana em Nova Iorque passou mais rápido do que Nicoly gostaria. Porém, ela voltou para casa feliz com tudo que vivera ali. No avião, de volta, ainda lembrava dos versos do poeta, lidos no livro que David lhe dera de presente: “Encontrei-te meio que a esmo / num rápido esbarrão virtual. / Depois não fui mais o mesmo, / pois teu encanto feminino / tirou-me a sombra do menino / e eu com meu sonho total / desse jeito que sempre acho / fui tomado por garra tamanha / e inundou-me a força do macho / pra fazer-te de simples estranha / uva saborosa de meu cacho”. Ela não sabia explicar a razão – talvez uma pontinha de ousadia que via naqueles versos – mas identificara-se com eles, a ponto de decorá-los.
Enquanto Nicoly esteve nos Estados Unidos, David se pegou por várias vezes, indagando da loucura que tinha feito. Se perguntava, como havia tido coragem de abordá-la do jeito que fez. No entanto, seu coração apaixonado o tranquilizava, indicando que tinha tomado a atitude correta: quem ama deve sempre lutar por seu amor, independente das consequências. E, se dependesse dele, seria capaz de fazer as maiores loucuras para demonstrar e defender o amor que acalentava no coração.
Além disso, ficou matutando sobre o que de impressionante, algo realmente especial, ele poderia fazer para marcar definitivamente o território do coração de Nicoly como propriedade sua. Tinha plena convicção de que fincara sua bandeira naquele território, mas tinha consciência, também, que precisava ocupá-lo. Caso contrário, a bandeira poderia ser arrancada por outro.
E foi assim pensando que, certo dia, caminhando pela rua do Lavradio, no centro do Rio, avistou um antiquário e se interessou pelas antiguidades ali expostas. Em princípio não sabia por qual razão entrara naquele estabelecimento comercial. Mas, aos poucos, examinando cada peça rara e de valor, percebeu que ali poderia encontrar algo que selaria seu apreço e estima por sua amada.
E foi exatamente o que aconteceu. Depositada num canto escuro de uma cristaleira do século XIX, ele viu uma caixinha especial, de madeira e madrepérola, numa obra perfeita de marchetaria. Era uma caixinha de música, criada e assinada pelo relojoeiro franco-suíço, Perreguet Pagaux Girartier, em 1863.
A criação de Girartier era um aperfeiçoamento do invento de Antoine Favre, relojeiro suíço, que em 1796, ao tentar implementar um dispositivo musical nos relógios, criou a caixa de música. E como detalhe fundamental, aquela caixinha de música fazia dançar uma pequena bailarina, que aos olhos do apaixonado David, tinha a bela face de Nicoly.
A caixinha de música de Girartier, a primeira a aparecer com uma bailarina, fez parte do desenvolvimento da tecnologia, mas surgiu a partir de um sonho que ele teve. No sonho, ele era instigado a montar uma caixa com o mecanismo de pastilhas de música por dentro e, por fora, colocar uma boneca de bailarina dançando, com a ajuda de um ímã interno. Ele foi desafiado a eternizar a beleza, a graciosidade e a paz de espírito, por meio de um invento. Quando acordou, fez o experimento, e a nova invenção deu tão certo, que ele conseguiu encomendas de toda Europa.
David adquiriu de pronto aquele exemplar que encontrara. Era autêntico e não saiu barato. Mas ele estava convencido de que valia o investimento, especialmente depois que o vendedor relatou-lhe uma lenda sobre aquele exemplar, a respeito do que falarei mais para a frente.
Foi com tais preparativos, que David aguardou a volta de Nicoly dos Estados Unidos. Agora, já de volta, ela satisfez a curiosidade dos pais e amigos acerca de sua temporada nova-iorquina. A menina estava tão exultante, que os pais compreenderam que tomaram a decisão certa ao dar-lhe a opção de escolha da forma de comemorar o seu aniversário. Fora um investimento pesado, debaixo de muitos sacrifícios, mas que com certeza traria retorno para a carreira da filha.
Interessante que ainda sem saber das ações de David em seu favor, ela reservara parte do dinheiro que os pais lhe deram, para adquirir dez modernas caixinhas de música estadunidenses e trazer como souvenires para os pais e os amigos mais chegados. Gastou um pouco mais com despesas diárias e ainda devolveu cerca de mil dólares para o pai. Nicoly era uma menina conscienciosa.
Seu Murilo, o pai da bailarina, ficou tão encantado com o gesto da menina que, conversando com a esposa, acertaram em conjunto de fazer uma festa surpresa, simples, porém bastante dinâmica, para comemorar os quinze anos da filha com pelo menos trinta de seus amigos. Deram um jeito de encontrar em seus cadernos e diários, no celular e até em suas recordações, pelo menos quinze nomes das principais amigas da filha. A cada uma dessas amigas, deram o direito de levarem mais um convidado ou convidada, com o único critério de que deveria ser alguém cuja presença alegrasse o coração de Nicoly.
Tudo isso foi planejado de afogadilho, na semana da sua volta da viagem, para o sábado seguinte. E foi assim que desse jeito meio atravessado, que Lívia, uma das quinze amigas escolhidas e amiga comum de Nicoly e David – a mesma que dera as dicas da viagem para ele – introduziu o jovem enamorado tijucano, na celebração surpresa do aniversário da moça.
Pronto. David tinha a ocasião oportuna, o momento mágico, para dar o presente histórico que comprara para aquela que gostaria que fosse sua namorada. Teria a chance de marcar mais uma vez o território daquele coração com algo inusitado, que guardava um segredo sesquicentenário, que o encantara quando tomou conhecimento dele e que se tornara a sua aposta para conquistar definitivamente o coração de Nicoly.
No sábado, bem cedo, Nicoly saiu para um evento de balé. Seus pais informaram que por conta de compromissos assumidos, não poderiam acompanhá-la dessa vez. Embora tivesse se surpreendido com o fato, pois aquilo nunca tinha acontecido – quando não se podia ir os dois, pelo menos um a acompanhava – não deu muita atenção ao fato, avisando que estaria em casa por volta das dezessete horas.
Era o tempo que se precisava para preparar os jardins da casa de Nicoly, que morava em uma chácara antiga no Alto da Boa Vista, para os festejos de seu aniversário. O corre-corre foi grande. Tudo já havia sido encomendado durante a semana. A partir da saída de Nicoly, começaram a chegar as encomendas, a medida que seu Murilo ia ligando para os fornecedores. A decoração, o bolo, os docinhos, o som da festa, e a equipe que fritaria os salgadinhos na hora, além da Banda de Garagem, formada por alunos do Colégio Militar, tudo foi ajeitando-se ao longo do dia, sendo que as dezessete, quando Nicoly estaria de volta, não havia nada mais para ser feito.
A festa teria início às dezenove horas em ponto. Horário em que todos deveriam chegar, entrando em silêncio na chácara, sem alardes, para não se estragar a surpresa. Seu Murilo combinou de pegar a filha na Estação de Metrô da Praça Sáenz Peña. Dona Adriana, já havia deixado tudo arrumado no quarto da filha – o vestido especial e o kit de maquiagem, com uma maquiadora profissional só esperando ela chegar para dar início à produção da princesa – e as instruções necessárias com a empregada sobre os preparativos finais. Ela foi com o esposo buscar a filha, para garantir o segredo.
Quando o carro se aproximou, viu que a mãe chegava com o pai, e estava assentada no banco de trás. Achou aquilo estranho, mas não falou nada. Ela estava no início da rua Desembargador Izidro, próximo à Praça Sáenz Peña. Tão logo o carro estacionou perto dela, ameaçou sentar na frente, ao lado do pai, mas foi impedida pela porta travada. Dirigiu-se então ao banco de trás e beijou o rosto misterioso da mãe, que esboçava um indisfarçável sorriso para a filha.
— Que foi, mãe? — Ela perguntou.
— Nada!
— Ah, como nada?! A senhora está com uma expressão diferente no rosto...
— Ah, filha — tentou disfarçar a mãe — a minha menininha já está uma moça e cada vez mais bonita. Isso alegra o meu coração.
Nicoly se jogou ao pescoço da mãe e deu-lhe um beijo terno na face, enquanto o pai, para desanuviar o ambiente e contribuir com o disfarce, ainda acrescentou:
— Linda. Linda, como a mãe!
Ao que ambas riram gostosamente.
A estratégia combinada entre o casal era que ao entrarem no quintal com o carro, em direção à garagem que ficava quase ao fundo do terreno, na lateral oposta onde ocorreria a festa, Dona Adriana mostraria um vestido que escolhera em uma revista de modas, para entreter a menina e evitar que ela olhasse em direção aos jardins e visse toda a ornamentação. Quase que o disfarce não funcionou, por conta do cara do som que estava testando e deixou escapar um som estridente. Seu Murilo foi logo desviando a curiosidade da filha, dizendo que a noite prometia, pois haveria festa na casa do vizinho.
Dessa forma chegaram incólumes à garagem, de onde Dona Adriana seguiu ágil com a filha para o quarto dela. Lá chegando, foi necessário inventar outra história. Ao ver o vestido sobre a cama, e a moça estranha que ali estava para fazer sua maquiagem, Nicoly quis saber o que significava aquilo. A mãe aproveitou o gancho da desculpa dada pelo pai:
— A filha do vizinho faz aniversário e nós fomos convidados.
— Sim, mas por que eu tenho que ir toda produzida? O aniversário não é dela?
— Sim, é verdade! Mas, vai ter muita gente importante por lá — tentou ser criativa a Dona Adriana — e eu gostaria que minha filha estivesse bem apresentável.
— Mas, mãe? Esboçou uma reação a menina.
— Filha, você já é a mais bonita do bairro, mas eu quero que você também seja a mais elegante. Como eu disse, vai ter gente da alta sociedade e eu não quero que minha filha faça feio.
As explicações da mãe não foram tão convincentes assim, mas, Nicoly, que não tinha um espírito contestador, acalmou-se e dispôs-se a obedecer a mãe. Precisava de um banho. A mãe monitorou cada passo da menina a partir do momento que entraram em casa. Por sorte, o banheiro que ela usava dava para os fundos, onde havia um muro alto separando os terrenos. O pouco de ruído diferente que ela escutava, passou a atribuir a essa tal festa que seria dada pelo vizinho da direita.
Havendo passado pouco mais das dezenove horas, os jardins já estavam iluminados e com praticamente todos os convidados presentes. Por seu turno, Nicoly, estava linda, vestindo um traje de festas: um vestido tubinho luxo, com babados, na cor rose, confeccionado em crepe de malha, de comprimento mídi e mangas curtas. Ela saiu do quarto exuberante, portando uma bolsinha de couro na mesma cor e desfilando sobre sapatos de salto alto, que acompanhavam o estilo fashion que fora proposto. A maquiagem estava suave, deixando os belos contornos de seu rosto ainda mais evidentes.
— Já estou pronta, mãe. — Gritou a aniversariante, sem saber que havia uma festança preparada para ela.
Enquanto ela estava no quarto, Seu Murilo e Dona Adriana se revezaram na vigilância da porta, de tal forma que quando ela deu o alerta de que estava pronta, a resposta foi a mesma:
— Também estamos!
Nessa altura os jardins fervilhavam com os convidados, que já não estavam se aguentando de tão ansiosos, querendo inaugurar a surpresa.
Quando Nicoly saiu do quarto, foi recebida pelos pais com entusiasmo.
— Você está linda, filha.
— Maravilhosa. — Arrematou o pai.
A mãe ainda acrescentou:
— Como está seu coração?
— Como assim?
— Está preparada para fortes emoções?
A moça já estava com uma forte desconfiança de que tudo o que estava acontecendo desde a manhã daquele sábado, possuía fortes componentes de mistério. Agora, diante daquela pergunta, suas suspeitas, ao que parece, estavam se confirmando.
— Ah, minha filha. Você vai ser a garota sensação da festa. Pode ter certeza de que você está tão linda, que todos os olhares se voltarão para você.
— Obrigada, mãe!
— Nós vamos estar de olho em você o tempo todo. — Disse o pai. — Não queremos que nenhum l’enfant terrible atravesse o seu caminho. Todos na festa deverão prestar honras a você. Você terá uma noite de princesa.
Nicoly não deixou de fazer um gracejo com a desenvoltura do pai em seu francês de segunda categoria:
— Que isso, pai? Está gastando o seu francês do Ensino Fundamental, é?
Eles riram, mas não estenderam o assunto, decidindo-se por dar sequência aos acontecimentos, visto que o momento era propício.
Em seguida, alcançaram a porta da sala que dava acesso aos jardins e, tendo sido aberta, ao pisar no primeiro degrau da escadaria de acesso à casa, Nicoly deu de cara com um imenso e belo tapete vermelho e foi recebida com um holofote que incidiu jorros de luz sobre ela, sendo aplaudida de pé pelos convidados que se perfilavam aos lados da passarela.
Ligeiramente atrás, seus pais, a acompanhavam, sorrindo orgulhosamente pela alegria da filha por estar sendo contemplada com tão agradável surpresa. De vez em quando Nicoly olhava para trás, para insinuar um ar de “vocês me pagam” para os progenitores que a haviam enganado desde cedo. A medida que caminhava, ia descobrindo os rostinhos conhecidos dos amigos e das amigas e fazendo acenos de mão ou meneando levemente a cabeça.
Cumpriu o protocolo até o fim da passarela, surpreendendo-se, quase ao seu final, ao ver David contemplando-a fixamente, portando um escancarado sorriso no rosto. Ela foi pega de surpresa com sua presença, mas devolveu a gentileza com um sorriso também, embora mais comedido, mas o leve rubor de suas faces, denunciava que seu coração, de alguma maneira, mesmo que em leve proporção, já tinha sido fisgado pelo rapaz.
Após cumprir o ritual do desfile no tapete vermelho com os pais, Nicoly, foi de amigo em amigo, beijou, abraçou, sorriu, agradeceu, fez poses, tirou fotos, sassaricou por todo o espaço da festa, dando atenção a cada convidado e se divertindo e participando das brincadeiras e guloseimas. Encontrou tempo para ir até os pais e troçar com eles sobre a grande surpresa que eles tinham lhe feito, beijando e abraçando-os, agradecendo por estarem lhe proporcionando momento tão único.
Nicoly recebeu muitos e inesperados presentes de seus amigos. Teve tempo de cutucar a Lívia – pois a essa altura já tinha descoberto que fora ela que facilitara as coisas para o seu pretendente – até que, em dado instante, ficou a sós com David para terem seu primeiro momento de trocas de palavras e olhares mais íntimos. De longe Seu Murilo e Dona Adriana observavam a conversa dos dois, em uma mesa um pouco distante do palco onde a banda se apresentava enquanto alguns casais dançavam.
Nicoly pode agradecer pelo livro, pela carta manuscrita, e por todos os sentimentos que envolviam aquela iniciativa, mas... David não a deixou completar seu pensamento. Tomando o presente que lhe trouxera, colocou-o sobre a mesa e empurrando-o em direção às mãos da amada, arrematou com as seguintes palavras, depois de gastar uns bons vinte minutos explicando o que era, como funcionava, sua história e a lenda que atravessava gerações sobre sua origem enigmática.
— Essa caixinha de música tem mais de 150 anos e é assinada por um relojoeiro famoso. Trouxe-lhe esse presente, porque desejo que enquanto essa bailarina estiver dançando o seu balé, você possa ter certeza de que há alguém aqui – e apontou para o próprio peito – que a ama e torce para que você se torne vitoriosa em todos os seus sonhos.
Concluiu a sua fala e liberou o presente que ainda retinha, mesmo ela já tendo as mãos sobre ele. Ele ainda o retinha com mãos firmes, porque enquanto conversava, seus dedos escorregavam fortuitamente para os de Nicoly, que sentia o carinho discreto de David. Nicoly examinou-o e, David, levantando-se, aproximou da moça e girando o dispositivo mecânico que acionava a corda da caixinha, deslumbrou a menina com um trecho da ópera “Rigolleto”, do italiano Giuseppe Verdi. Nicoly levantou-se e enlaçou David em um terno e afetuoso abraço, que ainda não era a resposta que o rapaz queria, mas já sinalizava um avanço e uma esperança.
A noite foi intensa e festiva. Nicoly aproveitou ao máximo a festa surpresa que os pais prepararam com carinho. Depois da conversa com David, retirou-se por um momento até o quarto, onde guardou seu rico presente, fazendo questão de trancar a porta à chave. Recordava com enorme alegria cada detalhe daquela conversa.
Manhã de domingo. Na casa dos Mattos, todos acordaram tarde. A noite anterior havia sido exaustiva, porém muito feliz. Nicoly, após fazer a toalete, dirigira-se à sala de jantar onde já encontrara os pais e os dois irmãos mais novos. O café da manhã teve a opulência dos quitutes que sobraram da noite anterior.
Os irmãos mais novos de Nicoly aproveitaram para zoar dela com os pais:
— Você viu, mãe, — falou o mais novo — a Coly de namorado novo?
— Isso, — reforçou o mais velho — eles estavam de altos papos ontem.
Nicoly fez cara de zangada e respondeu:
— Não é namorado nem é novo, pois eu nunca tive um.
— Que seja, mas que você está caída por ele, isso está. Dá pra ver no brilho dos seus olhos.
O mais novo, que era o mais espevitado, aproveitou para confirmar:
— Isso! Ela tá apaixonada!
Seu Murilo e Dona Adriana a tudo assistiam, quando a mãe resolveu de perguntar:
— Ele quer namorar com você?
— Quer!
— E você?
Nicoly engasgou, ficou vermelha, mas acabou por dizer:
— Ele é muito legal, mas ainda não me decidi.
— Tudo bem, filha. Fique tranquila. Estou torcendo por você. Só pedimos, eu e o seu pai, que quando tiver uma definição sobre isso, nos comunique, tá bom?
— Tá bom, mãe!
— Então me mostra o que ele deu de presente para você. Eu vi que você ganhou muitos presentes, mas parece que você deu uma atenção especial para o presente do David.
— Me sigam, então.
E, levantando-se, partiu para o quarto, no que foi seguida por todos. A mãe não sabia qual tinha sido o presente dado por David, mas, ao entrar no quarto e olhar a caixinha com a bailarina sobre a cômoda, perguntou, apontando para a caixinha de música:
— É esse, filha? O que é isso?
Ela respondeu:
— É um presente especial. David me disse que encontrou em um antiquário na rua do Lavradio. E que é uma edição única do famoso relojoeiro franco-suíço, Perreguet Pagaux Girartier, fabricada em 1863, para um príncipe dar de presente à mulher que ele amava; uma princesa de outro reino.
— Interessante. Deve ter custado caro! — Observou a mãe.
— Sim. Foi. Ele me disse. Mas, o mais interessante é a história que ele me contou sobre a peça.
Nicoly olhou para a caixinha de música, hesitou um pouco, mas decidiu dar corda. Havia observado com atenção David lhe ensinando na noite anterior, ao dar apenas um giro leve no mecanismo, para que ela pudesse ver a caixinha funcionando. Manter a caixinha funcionando sem parar seria uma decisão sua. E esse era o mistério embutido no presente que recebera.
Vinícius, o mais novo dos irmãos de Nicoly, interrompeu seus pensamentos:
— Conta, então, pra gente o que há de tão interessante nisso. Estou curioso.
— Ele disse que ficara sensibilizado com a história que o vendedor lhe contara e eu, também, ao ouvi-la. Talvez seja isso que esteja mexendo comigo nesse momento.
O pai não se aguentava de tanta curiosidade e não se contentando disse:
— E qual é a história? Conta logo. Quer matar a gente de curiosidade?
Nicoly suspirou profundamente e disse:
— Há uma lenda sobre o que aconteceu quando o príncipe deu de presente a caixinha para sua princesa amada...
— E que lenda é essa? — Perguntou Felipe, o mais velho dos irmãos.
— Esse amor pela princesa austríaca era um amor fadado ao fracasso.
— Fracasso?
— É, fracasso! — E prosseguiu: — Em um famoso baile promovido pela corte espanhola, quando teve oportunidade de fazer uma contradança com a princesa, o herdeiro do trono espanhol segredou ao seu ouvido que a amava e que desejava contrair núpcias com ela. No entanto, a princesa contou para o príncipe que a sua família tinha prometido a mão dela pra outro. Como ela, já de algum tempo, tinha olhares românticos para o príncipe, ela passou a sofrer com isso.
Enquanto falava, Nicoly andava de um lado para o outro, acentuando a história com suas passadas medidas e o tom de voz envolvente. Continuou:
— Percebendo a situação, um conceituado ourives de Paris, que também era relojoeiro, que conhecia a sua paixão pelo balé e que gostava muito dela, vai ao seu encontro com essa caixinha de música. E ele fala assim: "Enquanto o seu amor perdurar, a bailarina continuará dançando." E acrescentou: "É um presente do Príncipe de Espanha para Sua Majestade!"
— E o que aconteceu? Essa história está me deixando angustiada. Interveio a mãe.
A menina prosseguiu:
— Ele falava assim: "Enquanto ela continuar dançando, nada ficará no caminho de vocês dois." Então a princesa deu corda na caixinha de música e ela e o príncipe espanhol acabaram se casando.
O pai, inquieto, perguntou:
— Mas e o que aconteceu com a pessoa a quem os pais da princesa haviam prometido a sua mão e com quem ela iria se casar antes?
A filha respondeu, tentando disfarçar, que não estava preocupada com isso. Olhando novamente para a bailarina que rodopiava serelepe na caixinha de música, simplesmente disse:
— Eu não sei!
Mas resolveu arriscar uma resposta:
— Talvez ele tenha aberto mão, quando viu o tamanho do amor daqueles dois... Havia um segredo..
— E qual era? — Perguntou apressado o Felipe.
— A bailarina da caixinha de música.
— Como assim?
— Ela não poderia parar de dançar!
— E isso... — O Vinícius ia falar alguma coisa, mas foi interrompido.
— Isso dependia da princesa! — Arrematou Nicoly.
— Entendi. O segredo estava nas mãos dela e esse segredo era acionado pelo seu coração.
— Isso, mano, isso. Você acertou em cheio. Enquanto houvesse amor no coração da princesa, ela daria cordas na caixinha de música e a bailarina não pararia de dançar, restando a esperança daquela união.
— Deixa ver se eu adivinho o resto, — disse a mãe: — Então, a bailarina da caixinha de música continuou dançando, porque o amor deles prosseguia vivo, mas, especialmente, porque a princesa desejava que continuasse vivo ao manter a caixinha fora dos olhares curiosos, no recôndito do seu quarto e, mais que isso, ocupando-se de dar cordas nela todas as noites?
— Isso, mãe. A senhora tem um poder dedutivo muito aguçado. Mas, prestem atenção todos: aí aconteceu uma coisa que o criador da obra de arte não previu. Sempre que a princesa e o príncipe demoravam muito a se encontrar, esfriavam em seus sentimentos, tinham uma briga, ou qualquer perturbação no amor deles, a caixinha de música também era perturbada, até que eles fizessem as pazes. A performance da bailarina na caixinha de música dependia do amor deles.
O pai, preocupado com alguma coisa, que ele ainda não sabia exatamente o que era ou então sabia, mas optara por não revelar, ficou curioso com uma questão e não deixou de indagar:
— E quando eles morreram? O que aconteceu com a caixinha de música?
— Eu também queria saber isso — interveio o Vinícius — fala pra gente, Coly.
Ela prosseguiu:
— Dizem que ela continuou por ai encontrando casais apaixonados, dando sempre um jeito de se apegar ao amor desses casais. A bailarina da caixinha de música continuava a dançar enquanto o amor deles perdurasse. Enquanto o amor deles fosse como brasa viva, a bailarina da caixinha de música continuaria a dançar divertidamente ao som de sua musiquinha de embalar corações apaixonados.
A mãe fez uma cara de falsa surpresa com a narrativa romanceada que a filha fez daquela história e arrematou ironicamente:
— E, agora, a caixinha te encontrou.
A filha sentiu o golpe, balançou a cabeça negativamente, fez cara de desalento e voltando a olhar para a bailarina, concluiu de forma lacônica e triste:
— É só uma lenda. Eu não acredito em superstições.
E, aproximando-se da caixinha de música que estava sobre a cômoda, tomando-a em suas mãos, deu corda em seu mecanismo, para que continuasse funcionando plenamente. Em seguida, para desanuviar os semblantes dos familiares que não haviam ficado nada satisfeitos com sua última informação, detendo-se por alguns segundos a observar a bailarina dançando, fez expressões faciais de puro romantismo, que denunciavam o quanto ela gostaria que algo fosse diferente, e arrematou:
— Não acredito em superstições, mas acredito no amor. Especialmente esse que foi plantado em meu coração e que sinto que vai germinar como uma rosa bonita de meu jardim.
E sorriu gostosamente para todos, que, de imediato, aplaudiram suas últimas palavras, como se fora um discurso improvisado de orador de renome, fazendo uma algazarra sem tamanho para comemorar o “sim” que com certeza Nicoly daria para David.
Nicoly ainda acrescentou:
— Enquanto o Davi permitir que essa bailarina aqui — e apontou para o próprio peito — continuar dançando o seu tão amado balé, a bailarina da caixinha de música vai continuar fazendo suas evoluções programadas. Mas eu, de minha parte, quero dançar conforme a música suave e romântica que o David cantar ao meu rendido coração, sempre com criatividade e graça.
Vinícius e Felipe jogaram a irmã sobre a cama e pularam sobre ela, fazendo o famoso montinho de que estavam acostumados a brincar. Até Seu Murilo e Dona Adriana, entraram na brincadeira, deixando-se cair sobre a cama, tendo o cuidado de se posicionarem um de cada lado, para não machucarem os filhos com seu peso.
O próximo passo seria esperar um sinal do David, uma ligação, quem sabe, pois Nicoly tinha passado seu número de telefone para ele e marcar uma visita sua para um almoço, quando teria a chance, autorizada por Nicoly, de pedi-la em namoro aos seus pais. Mas, aí já é outra história e fiquemos por aqui por que essa já está ficando por demais longa. Hahaha!