Haicai problemático
Acordei pensando que faria dar certo, é uma segunda feira, oito de janeiro de 2024, segunda semana do ano. Liguei o computador e enquanto o sistema da empresa carregava, fui buscar meu café. Uma caneca de achocolatado gelado e duas bananas: é o melhor que consigo fazer nesse calor. Meu corpo está dolorido, pesado… Tenho de ficar parando a todo momento. Me debruço na mesa com a cabeça baixa, fico assim por alguns minutos, pensando: "não posso dormir, vou atrasar todos os relatórios de hoje". Não que faça diferença, pois meu cansaço é tanto que mal consigo ler as requisições (será que valeu a pena ter ido dormir tarde só pra assistir blade runner ontem a noite?). Abri o chrome, mouse nos favoritos: chat da empresa, outlook e central de chamados (GLPI). A cada toque de notificação meu corpo pesa mais: 4 emails recebidos sábado à noite do time contábil. Só consigo pensar no quão filho da puta tem que ser para enviar um email num sábado a noite, não dava nem para agendar o envio? De qualquer forma, por que o desgraçado tem de encontrar problema no sábado a noite?
Comecei a gerar os relatórios de rotina. Cada segundo que o sistema leva pra processar me dá mais preguiça, junto com o desejo de que o processamento leve o dia inteiro. "Pelo menos teria desculpa para não trabalhar", penso comigo mesmo. Sem sorte, os relatórios estavam prontos em menos de meia hora. E ainda não quero trabalhar.
Os cliques infinitos do mouse somavam os infinitos das horas, e olha que não adianta nem esperar até às 18, horário combinado para fim do turno, já que minha burrice PJ não deixa o dia acabar antes do trabalho. Ou vice-versa, se preferir. Veio a mim um descuido, um escorrego… Um pequeno tropeço, karma da impaciência e da preguiça, um clique improdutivo no inofensivo ícone do bloco de notas:
-cansaço quente
-inexistindo pesado
-na segunda-feira
Pronto... Agora um haicai problemático para arruinar meu dia. Um cansaço quente: é gambiarra; Cansado e quente: isso não é pra ser erótico; Quente de cansaço? perdeu o sentido... Fudeu, é exatamente como eu queria, mas não é o que é pra ser, tá tão próximo. Abri uma guia anônima, vergonha do poeta patético: sinônimos de quente. Enter. Abafadiço, abafado, abochorna-que? Burchinal, bochornoso. Cansaço bochornoso: isso nem funciona, soa broxante e acadêmico, se tem algo que não sou é acadêmico. Minha própria farsa poética se revela somente no orgulho íntimo: palavra tão difícil que não conheceria, ah sim, mas esta aqui... Esta aqui eu conheço e posso usar. Fecho a guia anônima. Cansaço caloroso: mas não deu e é horrível. 12:03. Pausa pro almoço.
Volto às 14:09, pós-cochilo. Seria esse um termo foda da filosofia? Tipo aquele "pós-moderno", nem sei que porra é essa até hoje, finjo que sim pela morfologia: após a era moderna. Mas meu eu aprendeu que é jovem moderno, usa celular, entende de computadores, wathsapp, tinder, instagram, todas essas coisas modernas. Então como algo pode ser depois de mim? Um após eu? Depois pesquiso no google. Outra. Minha boca seca é uma desculpa para adiar o trabalho por mais 5 minutos, para encher minha garrafa, que, a propósito, já está cheia. Duas garrafas de 900ml enchendo na torneira de vazão baixa, uhh... Isso sim que é saber enrolar, Marx teria orgulho da minha enrolação remunerada. Proletário moderno? Sou Pj, ter um MEI no T.I soa moderno. Clique vai, clique vem... Imerso no chat do Victor da contabilidade, sim, o desgraçado que enviou 4 fodendo emails num sábado. Pior ainda é que nenhuma das requisições que esse cara faz conta no meu apontamento de horas, por que? Porque esse fdp se recusa a usar o GLPI e abrir um chamado como gente normal. Um chamado que levaria horas pra ser aprovado, e prazo mínimo de resposta de mais dois dias, meu escudo da procrastinação e solução do haicai. Ah sim... O haicai:
Um alt+tab perfeitamente preciso, rápido e desastroso. De volta ao bloco de notas. Uma tela branca com três versos suficientemente significativos ao ponto de deixar o Victor no vácuo e as horas mais curtas. E se for isso mesmo? 4-7-5... Tão próximo do que é pra ser, mas problemático ao ponto de me deixar maluco com seu pequeno problema, um problema do tamanho de uma sílaba poética. Um problema chamado redondilha menor. Mas a poesia não é sobre isso? A tal da licença poética se aplica à poesia? Porquê assim... Se eu disser que só não é um haicai aos moldes do tradicional, não deixa de ser haicai. Aquele tal de Paulo Leminski escreveu haicais fora da "regra" e, olha que, na verdade, nem existe regra. A única coisa que trouxe esse problema pra mim é o maldito orgulho do poeta patético. Vai ver que meu maior problema é não ser um poeta, se o fosse, não teria problema um haicai 4-7-5, aliás, não seja por isso... Coloco um artigo qualquer no início, um pronome possessivo ou um conectivo no primeiro verso e está tudo certo: taí um haicai tradicional, onde todo sentido pode ser tão místico quanto ao que se entende por "poesia". Um poeta é um cara livre. Silenciado pelos meus próprios e tão escassos livros de poesia. Cansaço quente. Cansaço é quente: mas não estou dizendo que nada "é" alguma coisa. Cansaço quente, oras... Problema do haicai que sonha em ser tradicional. Digno de um poeta que quer escrever um haicai tradicional e consegue dizer tudo que pretende, sem deixar de ser tradicional: é o que ele quer, ser tradicional, pelo menos agora. Insatisfeito. No relógio já marcava 17:57.
Uma troca dolorosa do bloco de notas pelo GLPI. O Victor já não me incomoda mais, o problema agora, além do haicai, é o Rafael do time de marketing. Maldito Rafael, chamado com prazo para o dia 08/01/2024: estava estampado em letras minusculas na ardente tela branca. Mais doloroso que a luz incandescente nos meus olhos, era o fato de que já deu a hora e ainda tenho que entregar esse relatório. Todo tempo perdido por causa daquele maldito haicai. Um relatório problemático, feito às pressas, somente para tapar um prazo, o mínimo para ser entregue: o problema dele, assim como o do haicai, é tão pequeno quanto uma coluna. Essa coluna eu sei preencher, só não quero, porque dá trabalho e já deu minha hora. Rafael que me peça para refazer e, gloriosamente, estenda o prazo, coisa que consigo resolver em 2 minutos, me dê 2 dias... Tenho uma prioridade aqui, outra acolá, afinal, esse relatório não significa absolutamente nada pra mim, é só uma entrega.
O alívio do trabalho feito, a ardência nos olhos, somados à escuridão do céu, dão lugar ao cansaço que não me interessa. São 19:34 e o Cansaço quente continua problemático, mesmo que já não exista. Ler um conto de um autor famoso pode me trazer inspiração, é isso que eles dizem, né? Referência. Nada se cria, tudo se copia. Incisivo foi “Idolatria”, de Sérgio Faraco, em me dar uma certeza: não há sequer um poeta não lido neste quarto. Eu tinha um problema e não sabia resolver, quanto a fome? Um copo de coca-cola e dois pacotes de miojo resolvem por agora, esse problema eu deixo pro futuro. Sentado no vaso / Sobe cheiro forte / Ploft! caiu n'agua. Outro problema resolvido. Foda-se, agora é função da minha monótona rotina resolver o problema. Se nem a natureza fluida, escaldante e límpida do meu lorenzeti emendado pôde resolver, então, o poderoso autômato biológico, auxiliado de cerdas e pasta sabor menta, trazem a pio a divina resolução. Nada? Um comprimido dipirona 1g, o apagar das luzes e o som vibrante do velho empoeirado ventilador de teto, acrescido de duas moles sacas de espuma vencida, e um colchão atravessado da criatividade de tantas almas, isso sim resolve, né?
Amanheci ressacado de problemas, dando bom dia ao haicai e finalizando um conto: Haicai problemático.