O Campeão

A Copa do Mundo de Bolinha de Gude

era sagrada na vila onde eu nasci.

Durante as férias escolares,

todos os moleques da vila se reuniam

na terra vermelha dum terreno baldio.

Removíamos tudo o que poderia atrapalhar

o desempenho dos grandes profissionais:

pedaços de pau, cacos de vidro, tijolos,

mangas, papel, arame farpado, tiririca,

pregos, farrapos, garrafas de plástico etc.

Depois, passávamos uma vassoura

para o "gramado" ficar lisinho, lisinho,

brilhando igual careca de vovô.

Então, o juiz, o mais velho da turminha,

se dirigia ao centro do estádio,

para construir o nosso gol,

que era um buraco chamado de burco.

Ele soltava uma bolinha grande no chão,

pisava nela com um chinelo,

a removia cirurgicamente,

esculpia as bordas arredondadas

usando a ponta dos dedos,

e jogava uma bolinha no buraco,

umas três ou quatro vezes seguidas,

para avaliar a qualidade da obra de arte.

Após aprová-la rigorosamente,

posicionava o calcanhar rente ao burco,

dava cinco passos bem grandes para frente

e traçava uma linha com o pé,

a qual marcava a distância que os jogadores

deveriam fazer o lançamento inicial

em direção ao burco,

pois quem parasse mais próximo a ele

seria o primeiro a jogar, tendo assim

uma grande vantagem na partida.

Então os meninos gritavam:

"Primeiro! Segundo! (eu pedi primeiro!)

Terceiro! (não pediu, não!) Quarto!

(pedi, sim!) Quinto!

(não pediu, mil vezes!) Sexto!

(pedi, infinitamente!) Sétimo!

(NÃO PEDIU, INFINITAMENTE DUAS VEZES!!!)

.......................................................................

Depois, quando todos finalmente se calavam,

eu levantava a mão e gritava: "Últimooooo!"

E todos riam...

Eu era muito, mas MUITO ruim,

nem sonhava em vencer a Copa,

pois tinha dedos de mingau,

e era pior do que um ciclope na pontaria.

Eu gostava era da diversão, dos amigos,

de colecionar as bolinhas raras,

da torcida organizada das meninas,

do "Ééééééé" na comemoração duma bela jogada,

do "Uhhhhhh" quando uma bolinha tirava fina,

e do "Aiiiiii" quando uma quebrava a outra.

Num certo ano, um menino de outra cidade

veio passar as férias na casa da avó.

Ela falou para ele da Copa, e ele foi participar,

entretanto, ele só tinha uma bolinha e,

por isso, a turma não queria deixá-lo jogar,

pois era necessário apostar dez bolinhas.

Havia uns vinte moleques naquele dia,

todos falando um mais alto do que o outro,

como se uma raposa estivesse no galinheiro.

Mas a bolinha dele era normal, transparente,

não vi motivo algum para aquela algazarra.

Então, coloquei dois dedos na boca,

assobiei bem alto, todos se calaram

e olharam para mim atentamente,

tirei os dedos da boca, e disse:

"Se vocês não deixarem ele jogar,

vocês são um bando de medrosos!"

Logo eu... o pior da turma!

Tiveram que aceitar...

pois o Orgulho de todos eles

falou mais alto do que a Discórdia.

Após os procedimentos ritualísticos no campo,

começou toda aquela baita gritaria

da escolha da ordem dos jogadores.

Mas o menino de fora ficou calado,

meditando igual um sábio no topo dum monte;

e eu, que sempre era o último para fazer a piada,

fiquei esperando-o falar, mas ele não falava.

Tive que me resignar com o penúltimo lugar...

Mas não me dei por vencido, não,

joguei minha bolinha bem longe,

para fazer questão de ser o último,

e também para durar mais na partida, é claro.

Ele jogou a bolinha de olhos fechados,

ela parou bem na cara do burco,

tornando-o, portanto, o primeiro a jogar.

Ele foi calmamente até a bolinha dele,

pegou-a, jogou-a no burco e... acertou.

Agora ele tinha superpoderes!

Pois o jogador que acerta o burco

elimina automaticamente do jogo

qualquer bolinha que ele acertar

dali em diante.

Os meninos soavam frio.

As meninas faziam a ola.

Ele tirou a bolinha do buraco,

ajeitou-a entre os dedos e...

PÁ! acertou a primeira bolinha,

mandando-a para bem longe,

fazendo a dele parar no lugar da que acertou.

Jogou de novo e...

PÁ! acertou a segunda,

partindo-a certinho no meio,

e fazendo o dono dela ir embora chorando,

correndo, chamando pela mamãe.

Acertou a terceira, que sumiu magicamente,

e continuou acertando as bolinhas,

uma após a outra, e sempre do mesmo jeito,

ou seja, fazendo a bolinha dele parar

no lugar exato da que ele havia acertado.

A precisão era absurda! Fe-no-me-nal!

Eu fiquei de boca aberta em pensamento.

Parecia que ele tinha mira a laser no polegar

e binóculos no lugar dos olhos.

No final, quando só sobrou uma bolinha,

a torcida toda emudeceu.

Era uma jogada muito difícil,

de uma distância muito longa,

mais ou menos uns dez metros,

pois era a minha bolinha,

aquela que joguei bem longe,

de propósito, no início da partida.

Era possível sentir o silêncio denso.

Todos estavam focados no milagre.

O menino da cidade grande agachou,

pegou a bolinha com carinho,

cuspiu nela, lustrou na camiseta encardida,

deu uma leve assoprada,

como se fosse uma pequena oração,

levantou, molhou o dedo indicador na língua,

ergueu-o para cima analisando o vento,

calculou a trajetória, a força etc.,

e jogou...

e, obviamente, acertou na mosca.

Foi a única Copa sem barulho na vitória,

todos continuaram mudos,

nem mesmo o menino falou um "a".

O juiz foi solenemente

entregar o prêmio para ele,

o qual era uma lata de tinta

cheia de bolinhas de gude,

cerca de duzentas, de todos os tamanhos,

pesos, cores e tipos imagináveis:

carambolinhas, leiterinhas, japonesas,

acinhos, normais, importadas etc.

Então, o menino pegou aquele tesouro

com a mão esquerda no fundo

e com a mão direita na boca da lata,

e jogou todas para cima,

igual um semeador!

Naquele instante, o tempo congelou,

eu pude ver todas as bolinhas no ar,

girando como planetas, luzindo,

refletindo o amor do sol amarelo.

Foi algo muito bonito de se ver,

meu coração parou por um segundo.

Porém, do nada, as bolinhas caíram

como uma chuva de meteoros na terra.

E o menino de fora disse:

"Podem pegar, são todas de..."

Ele nem precisou terminar a frase,

a molecada voou nas bolinhas,

igual um bando de urubus na carniça.

Foi uma farra intensa, gigantesca,

mas eu fiquei parado, igual uma geladeira,

olhando para o Campeão.

E ele permaneceu lá, de pé, quieto,

com os meninos agachados aos pés dele,

igual súditos de um rei

envolto numa aura de paz misteriosa,

feliz por ter compartilhado alegria

com aqueles que o rejeitaram.